07 Jun / 2021

Parecidos – pero no mucho

Toda vez que ouço alguém dizer que os brasileiros sabem se virar em espanhol; que nossos vizinhos hispanohablantes sempre dão um jeito de compreender o que dizemos por aqui; que a tradução simultânea espanhol <> português pode ser dispensada porque, de um jeito ou de outro, o pessoal acaba se entendendo… penso nas inúmeras ciladas contidas na comunicação entre falantes desses dois idiomas, aparentemente tão próximos e inofensivos.

Penso que quem “late” em castelhano não é o cachorro, é o coração; que “orilla” não é orelha, e sim margem; e “pelo” não é pelo, é cabelo. Penso que “oso” não é osso, e sim urso; e “polvo” não é polvo, e sim pó. “Raro” é esquisito, e não raro; e “exquisito” não é esquisito, mas sim delicioso – veja só que deliciosa esquisitice idiomática. Quando a comida está gostosa, a gente diz que está “rica”; e se a salada está salgada, a gente diz que está “salada”. Se você quer que alguém aceite a salada, não diga aceite, porque “aceite” é azeite. E se um espanhol perguntar se a salada contém “berro”, não solte um berro, pois “berro” é agrião. “Apellido” não é apelido, e sim sobrenome; e “sobrenombre” não é sobrenome, e sim apelido. “Sótano” não é sótão (é porão); “zurdo” não é surdo (é canhoto); e “pelado” não é pelado, (é careca). “Cura” não é cura, é padre; e “padre” não é padre, é pai. A brincadeira dos falsos cognatos não tem fim.

As enganosas semelhanças entre palavras são apenas a pontinha do iceberg que separa essas duas línguas aparentadas. As diferenças incluem uma porção de gêneros de substantivos (“la nariz”, “el análisis”, “una sonrisa” e tantos outros), a inexistência de algumas formas verbais do português no castelhano (o infinitivo pessoal), a tinhosa pegadinha dos “mil millones” (bilhões) e “billones” (trilhões), etc, etc, etc.

Vale lembrar também que não existe um único espanhol. As variações entre a língua falada no Peru, na Bolívia, no Paraguai e na Espanha não são desprezíveis, e aumentam o grau de dificuldade desse jogo de entendimento. Só no setor de frutas as arapucas aparecem às pencas: “frutilla” (morango), na Argentina e no Chile, é “fresa” na Espanha; o “aguacate” (abacate) da Venezuela vira “palta” no Uruguai; e uma simples banana pode ser “platano” no Chile, “cambur” na Venezuela e “banano” (isso mesmo, com “o”) na Colômbia. Ah, e como bem lembrou a Camila Bogéa – uma intérprete de mão cheia, que domina todas essas mumunhas: ônibus é “autobus” na Espanha, “guagua” em Cuba e “camión” no México (pois é, os mexicanos chamam ônibus de “camión”. Vai entender). Isso fora o nosso micro-ônibus do português, que os colombianos chamam de… Bom, essa é melhor nem contar.

Ou seja: a quantidade de situações e contextos que convidam um falante de português ao equívoco na hora de se expressar em espanhol, e vice-versa, é imensa. Naturalmente, não há problema algum em se atrapalhar numa temporada de férias em Buenos Aires, na hora de pedir um ojo de bife e uma taça de malbec num restaurante. Quem nunca recorreu e foi salvo pelo bom e velho portunhol? Mas cometer erros numa reunião de trabalho, numa apresentação profissional ou num congresso diante de uma plateia de especialistas… Aí são outros quinhentos. Nesses momentos, a presença do intérprete é fundamental.

Resumo da ópera: não se deve dar de barato que os brasileiros entendem o espanhol e os hispanohablantes, o português. E esse, no fundo, é o grande barato da diversidade de idiomas – mesmo quando eles são parecidos, pero no mucho.

Texto de Beatriz Velloso.

31 Mai / 2021

Tão longe, tão perto: os desafios da tradução simultânea remota

Um palestrante na Ásia, outro nos Estados Unidos, um ministro do Supremo Tribunal Federal em Brasília e mais dois participantes falando de São Paulo. Uma plateia com gente assistindo em Curitiba, Porto Alegre, Salvador e outras cidades brasileiras. Cada um na própria casa, todos conectados à internet, podendo falar e ouvir as apresentações na língua de sua escolha – graças à presença virtual de uma dupla de intérpretes. Este exemplo real representa o novo cotidiano de centenas de intérpretes de todo o mundo, que tiveram de se adaptar, da noite para o dia (como tantas outras profissões) à realidade do home office e das videoconferências.

Já escrevi aqui sobre os desafios enfrentados por intérpretes e tradutores naquela vida que chamávamos de “normal”. Falei sobre as armadilhas de interpretar celebridades famosas; sobre as arapucas da tradução de textos jornalísticos; sobre a falsa simplicidade da combinação espanhol <> português – que leva muitos desavisados a acreditarem na premissa equivocada de que nativos dos dois idiomas se entendem perfeitamente.

Nos últimos dias, li também uma porção de textos escritos por profissionais de outras áreas – advogados, engenheiros, economistas e, é claro, especialistas em saúde – sobre as dificuldades impostas pela situação inaudita que atravessamos hoje. Para intérpretes de conferência como eu, o distanciamento social também causou uma reviravolta. A tradução simultânea remota tornou-se incontornável, tivemos de pegar esse touro à unha – e, para isso, lançamos mão de muito jogo de cintura, bagagem profissional e conhecimentos técnicos (requisitos que já eram importantes antes, mas agora se tornaram imprescindíveis).

Percebi alguns desafios comuns no evento citado no início deste texto, em outras experiências que tive nas últimas semanas e em episódios relatados por colegas intérpretes. Algumas dessas questões se aplicam a qualquer pessoa que participa de videoconferências ao vivo, na condição de panelista ou de plateia – e não apenas a quem faz a tradução simultânea. Divido a seguir um ou outro tema que me ocorreu, não necessariamente em ordem de importância. A lista não é exaustiva, e novos itens e outras histórias serão bem-vindos.

1) Variação na qualidade da conexão de internet dos participantes: tem gente que entra na conferência com uma super banda larga por fibra ótica, que voa na velocidade da luz. Outros usam um celular com um wi-fi que oscila ao sabor do vento. Sendo assim, é comum a imagem congelar, o áudio falhar ou haver um delay entre vídeo e áudio de quem está falando (a boca faz um movimento, mas a voz já está lá na frente). Para o intérprete, esse delay é um aviso: hora de fechar os olhos, concentrar todos os esforços nos ouvidos, abandonar a visão e confiar na audição. Poucas coisas são mais desconcertantes para um intérprete do que falta de sincronia entre imagem e som. Quando isso ocorre, o vídeo do palestrante mais atrapalha do que ajuda. A afirmação certamente vale, embora com menor grau de incômodo, para a plateia virtual. Por isso, sempre, sempre, sempre que possível (este ponto é realmente importante), quem for participar do encontro como palestrante deve recorrer a uma conexão de internet cabeada, que garante mais qualidade na transmissão e evita – em bom português – o perrengue de sair do ar no meio da apresentação. No caso dos intérpretes, também é fundamental contar com fone e microfone profissionais, próprios para esse tipo de transmissão.

2) A profusão de plataformas de videoconferência: Meet, Teams, Webex, Zoom, BlueJeans… As opções são muitas, cada uma com recursos diferentes e particularidades específicas. Quando o ingrediente tradução simultânea é acrescentado à receita, as variáveis aumentam ainda mais. Com o avanço da pandemia e por força da circunstância, os intérpretes aprenderam uma porção de truques para fazer a tradução simultânea remota funcionar a contento – incluindo sessões de perguntas e respostas, a participação de um moderador e outras manhas. Tivemos de nos tornar, na marra e em tempo recorde, especialistas em TI. (É por essas e outras que adoro a minha profissão: ela obriga a gente a estar sempre aprendendo, mesmo – ou talvez sobretudo – em cenários complexos como o atual. Um conhecimento que sem dúvida será útil também quando a poeira baixar e a vida começar a voltar ao normal.)

3) Os percalços inevitáveis de encontros virtuais com cada um na sua casa: o cachorro late, o filho entra na sala gritando, a obra martela no apartamento de cima, um parceiro lava a louça na cozinha, o panelaço começa nas janelas do bairro, a vizinha toca piano (lindas sonatas, no meu caso, que adoro ouvir e só me atrapalham quando sento para traduzir na frente do computador). Com a derrubada das fronteiras que separavam o escritório do ambiente doméstico, estamos todos sujeitos aos ruídos do cotidiano. Para os intérpretes, esses sons representam um obstáculo adicional: se o palestrante está ministrando uma aula e os demais participantes mantêm o microfone aberto, todos esses barulhos vão concorrer com o áudio que o tradutor precisa ouvir perfeitamente, para então vertê-lo ao outro idioma. Talvez o hábito de desligar o microfone quando não estamos falando seja a regra número um de etiqueta nesse período de trabalho remoto.

4) A profissão fora da cabine e a distância entre a dupla de intérpretes que traduz o evento: quem faz tradução simultânea está acostumado a ficar bem perto do colega (ou do “concabino”, no jargão da interpretação). A cabine de tradução simultânea é tão exígua e cheia de botões que costuma ser comparada a um cockpit de avião. Agora, cada intérprete está no seu canto – e as anotações passadas num papelzinho, os post-its que a gente cola na frente do colega para ajudar com um termo cabeludo, a troca de olhares para sinalizar a hora de ceder o microfone ao outro… tudo isso se perdeu. Felizmente (como em tantos aspectos do atual momento), a tecnologia está aí para ajudar. Numa tela fica a videoconferência; noutra, o WhatsApp ou qualquer meio de enviar mensagens, dicas de vocabulário e glossários durante o evento. Pessoalmente, posso afirmar sem medo de errar que essa é a parte de que mais sinto falta: estar fisicamente presente na sala da conferências, vendo o palestrante em carne e osso, podendo cutucar o colega, trocar ideias e falar bobagem no intervalo do cafezinho. A cabine de tradução é, sem dúvida, um local de trabalho insalubre: toda forrada para garantir isolamento acústico, ela é apertada, abafada, cheia de ácaros e desconfortável. Mas eu adoro esse cafofo, e tenho saudade dele todos os dias.

Tudo bem. A tradução simultânea remota, para todos nós que atuamos na área, tem sido um desafio, um grande aprendizado – e também uma curtição.

Texto de Beatriz Velloso

24 Mai / 2021

A tradução do horror

O atrativo inicial para assistir a Quo Vadis, Aida?, candidato derrotado da Bósnia e Herzegovina ao Oscar de melhor filme estrangeiro deste ano, era o fato de a protagonista ser uma intérprete. A atriz Jasna Djuricic é a Aida do título, uma professora que se torna intérprete das tropas da ONU durante a Guerra da Bósnia (1992 – 1995). O crachá de funcionária das Nações Unidas confere a Aida alguns privilégios em meio ao caos do conflito: proteção física, contato direto com generais, acesso a comida e banheiro – um luxo num momento em que o cenário é de destruição. Mas seu trabalho também a coloca diante de horrores indizíveis, com a função justamente de… falar sobre eles. Cabe a ela interpretar as mensagens (quase sempre desesperançadas) dos capacetes azuis aos refugiados, e vice-versa; ajudar paramédicos a atender feridos em situação crítica; transmitir comunicados que ela pressente serem equivocados, mentirosos e até capazes de levar milhares de civis à morte.

O filme, porém, vai muito além da atuação de uma intérprete num contexto de guerra. A produção, dirigida por Jasmila Zbanic, retrata com grande força e sensibilidade as diferentes dimensões devastadoras do conflito – sobretudo de um episódio específico: o massacre de Srebrenica. Na ocasião, mais de oito mil muçulmanos foram assassinados pelas forças do comandante sérvio Ratko Mladić, posteriormente condenado à prisão perpétua por crimes contra a humanidade. Sobre esse pano de fundo histórico Quo Vadis, Aida? costura o drama pessoal da personagem principal, que tenta desesperadamente salvar a própria família.

Assistir ao filme com o olhar de profissional da interpretação faz refletir sobre diversos aspectos: a exaustão de trabalhar em condições aterradoras; a dificuldade de se manter neutra quando os refugiados que Aida precisa traduzir são seus ex-alunos, conhecidos, vizinhos, filhos; o cuidado na escolha das palavras ao interpretar negociações de alta tensão, que podem determinar a sobrevivência (ou a aniquilação) de grupos inteiros de pessoas; a delicada tarefa de transmitir mensagens das quais se discorda, ou que são flagrantemente enganosas. A despeito do interesse específico para quem trabalha na área, o longa-metragem bósnio é um programa que vale a pena para qualquer pessoa que goste de história, de narrativas humanas contundentes e de cinema bem-feito. A diretora entrelaça todos esses aspectos com habilidade e mão firme, sem jamais escorregar para a pieguice.

Audrey Hepburn em "Charada"

Em tempo: Quo Vadis, Aida? é mais um título na “linhagem” de filmes que têm intérpretes entre os personagens principais. Quase sempre o profissional de tradução é colocado na condição simultânea de testemunha da história e sujeito afetado pessoalmente pelo desenrolar dos acontecimentos. Quem quiser maratonar pode assistir também O Tradutor, com Rodrigo Santoro no papel de um cubano que se torna intérprete de russo para ajudar crianças vítimas do desastre nuclear de Chernobyl; o curta-metragem Chuchotage, também indicado ao Oscar, brincadeira leve e divertida com um episódio ficcional ocorrido no escurinho da cabine; o clássico Charada, com ninguém menos do que Audrey Hepburn no papel de uma intérprete; Amistad, em que um intérprete é convocado para traduzir na Suprema Corte americana o julgamento de um grupo de escravos africanos amotinados; e o mais famoso de todos, A Intérprete, com Nicole Kidman no papel de uma funcionária da ONU que se envolve numa trama da espionagem.

Nicole Kidman em "A Intérprete"

(Quo Vadis, Aida? está disponível no iTunes e no Google Play. No Oscar deste ano, ele perdeu para o ótimo dinamarquês Druk – Mais Uma Rodada, que também vale o preço do streaming.)

Texto de Beatriz Velloso

17 Mai / 2021

“Negacionismo”, “feminicídio”: novos vocábulos do nosso idioma

A Academia Brasileira de Letras divulgou recentemente uma lista de novas palavras (“gordofobia”, “afrofuturismo”, “uberização”) incorporadas oficialmente ao léxico do português brasileiro, conforme noticiou a revista Veja. A decisão da ABL tem importância mais simbólica do que prática. Ela indica que a vetusta entidade fundada em 1897 por Machado de Assis, onde os “imortais” se reúnem vestindo seus solenes fardões, finalmente abraçou um fato incontornável: a língua é um organismo vivo, mutante, uma esponja que absorve tudo ao redor (quem nunca ouviu alguém dizer: “o link está embedado no site”?). Lutar contra essa realidade “é a luta mais vã”, parafraseando o famoso verso de Carlos Drummond de Andrade. E, por mais que a Academia tenha lá suas regras e resistências, as pessoas vão falar o que e como bem entenderem – nas ruas, no Twitter, nas conversas por WhatsApp, no bate-papo sobre o Big Brother.

Há algum tempo a ABL já vinha publicando em seu site uma nova palavra por semana. A diferença, agora, é que os termos que integram a recém-divulgada lista serão formalmente adotados pelo Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, que serve como base para os dicionários. Embora não se publiquem mais dicionários físicos (na era digital, não faz sentido um catatau de 2922 páginas, como é o caso do Houaiss), as compilações de verbetes seguem sendo atualizadas – e o VOLP, como é conhecida a lista compilada pela Academia, é a principal referência.

Aurélio Buarque de Holanda, o homem cujo nome virou sinônimo de dicionário, foi um dos primeiros lexicógrafos brasileiros a colocar em prática essa compreensão. Nos longos anos de pesquisa e labuta para reunir os mais de 120 mil verbetes da primeira edição do “Novo dicionário da língua portuguesa” (era esse o nome original da obra lançada em 1975), ele fez questão de incluir gírias, palavrões, regionalismos, termos relacionados a sexo e estrangeirismos – coisa que muitos filólogos da época se recusavam a fazer, teimando em não “poluir” a língua, como se fossem as páginas estáticas que determinassem o uso que a gente faz do idioma, e não o inverso. Um exemplo singelo: entre os sinônimos de “libélula”, Aurélio colocou “lava-bunda” – um pequeno escândalo para a sociedade conservadora de então, em plenos anos de chumbo da ditadura militar.

A história da criação do famoso dicionário é narrada com leveza no simpático “Por trás das palavras”, do jornalista fluminense Cezar Motta, lançado no final do ano passado. Num trecho do livro, o autor cita uma entrevista dada por Aurélio, na qual ele dizia: “As palavras são ariscas. Quando você vê, a palavra tragou você”. Talvez a sacada mais inteligente do lendário dicionarista alagoano tenha sido se deixar engolir pela língua, conforme a ABL (na qual Aurélio ocupou a cadeira de número 30, hoje pertencente a Nélida Piñon) está finalmente fazendo agora.

Texto de Beatriz Velloso.

11 Mai / 2021

Uma pandemia de novas palavras

Os alemães criaram centenas de termos para descrever os efeitos sanitários, sociais e econômicos do coronavírus. Essa chacoalhada no dicionário mostra que a importância de um acontecimento na sociedade pode ser medida, também, pelas mudanças que ele causa no nosso jeito de falar.

Outro dia escrevi sobre as novas palavras incorporadas oficialmente ao português (uberização, gordofobia, lockdown). Agora a Folha de S. Paulo informa que os alemães, com sua “língua-Lego” que permite juntar pecinhas e formar uma infinidade de novos vocábulos, criaram cerca de mil termos associados à pandemia. Compilada pelo Instituto Leibniz para Língua Alemã, a lista é longa e reúne expressões citadas na imprensa do país desde o início do ano passado – algumas delas cunhadas pela própria chanceler Angela Merkel.

Os neologismos alemães formam a sopa de letrinhas que se espera do idioma de Goethe, um fascinante amálgama de várias palavras que se fundem para formar outra, até então inexistente: Coronamutationsgebiet é uma “região de mutação do vírus”; Impftourismus se refere ao “turismo de vacina” entre diferentes estados, em busca de locais onde a imunização avança mais rápido; Klopapierhysterie é a “histeria do papel higiênico” que acometeu muita gente no início da quarentena; Kontaktnachverfolgungsapp define um “aplicativo de rastreamento de contatos”; Lockdownverweigerer são os “negacionistas do lockdown”… E assim por diante.

É interessante notar que o impacto de determinado acontecimento na sociedade pode ser medido, entre outras coisas, pela chacoalhada que ele causa na língua. As invenções alemãs são um retrato bem-acabado da relação simbiótica entre o desenrolar da história e o nosso jeito de falar. Por aqui, os brasileiros sempre foram pródigos em criar neologismos ou estabelecer novas acepções para expressões antigas, que ganham carga e significado renovados ao descrever o cenário político do país. Alguns exemplos da nossa criatividade semântica, desde o momento mais recente e rebobinando para as administrações anteriores: bozo, bolsominion, gripezinha, e daí?, pequi roído, posto ipiranga, 01, 02, 03, ele não, petralha, picolé de chuchu, mensalão, tchau querida, pixuleco, japonês da federal, coxinha, mortadela, engavetador geral da república, anões do orçamento, acabar em pizza, etc, etc, etc, etc. Só um brasileiro é capaz de compreender todas as nuances contidas nesses termos, que brotam de forma espontânea, no calor do momento.

É claro que, com o passar do tempo – e com o consequente desaparecimento desses assuntos do noticiário –, muitos dos novos vocábulos morrem na mesma velocidade com que nasceram. Mas, enquanto estão ativos e presentes na boca do povo, eles são vistos por intérpretes de conferência com um misto de interesse profissional e cautela. Sempre que aparecem no discurso de uma pessoa que estamos traduzindo, essas expressões fazem soar uma sirene interna: “atenção, risco de levar uma rasteira”. No calor da tradução simultânea, com apenas alguns segundos para produzir uma solução correta e que faça sentido para um estrangeiro, como explicar todo o significado contido em rachadinha? Ou, na mão inversa, como esclarecer para um brasileiro, num piscar de olhos, que uma Öffnungsdiskussionsorgie (o neologismo cunhado por Angela Merkel) é um excesso – ou orgia – de discussões sobre a reabertura após um período de lockdown?

É o tipo de situação em que o intérprete provavelmente vai se render à conclusão de que alguma perda é inevitável: por mais que se arrume uma solução no outro idioma, ela não será capaz de transmitir todo o contexto que vem a reboque da expressão original. Nesses casos, o melhor a fazer é buscar uma explicação curta e simples, que transmita o cerne da ideia, para não deixar na mão o ouvinte que depende da tradução simultânea (no caso da rachadinha, o intérprete pode, por exemplo, dizer algo como “suspeitas de corrupção”). Quem trabalha com idiomas sabe que o nosso cotidiano tem dessas: em algumas situações, é preciso aceitar que nenhuma opção feita pelo tradutor surtirá no público internacional o mesmo efeito causado sobre um brasileiro (que dispõe de uma série de informações sobre o cenário à qual se refere o neologismo). Essas pequenas frustrações, porém, são compensadas pelo prazer de compreender e enxergar beleza até mesmo em palavrões como Coronahoffnungsträger – algo como “portadores de esperança do corona”, outra novidade do alemão, criada para definir medicamentos ou pessoas que trazem boas notícias na luta contra a COVID-19.

Texto de Beatriz Velloso.

09 Jul / 2020

O melhor filme (não) indicado ao Oscar – pelo menos para os intérpretes

Há 20 anos o jovem húngaro Barnabás Tóth teve uma única experiência de trabalho como intérprete de conferências. “Foi um pesadelo”, lembra ele, em entrevista exclusiva concedida por e-mail ao blog Outras Palavras, da VOX. “Felizmente, apenas um senhor ouviu minha tradução para o francês. No final do dia, eu me desculpei pelo péssimo trabalho que havia feito”. O episódio traumático ficou na memória de Tóth, que acabou abandonando a tradução simultânea para ser cineasta. No ano passado ele lançou Chuchotage, curta-metragem que mostra um dia de trabalho na rotina de dois intérpretes de húngaro (esses sim, profissionais experientes) e de sua única ouvinte na plateia.

O filme foi “candidato a candidato” ao Oscar 2019, mas não passou pela peneira final (e por isso não está entre os finalistas que disputarão a estatueta na cerimônia do domingo, 24 de fevereiro). Fora da premiação, infelizmente diminuem as chances de que o título seja exibido em festivais pelo mundo e chegue ao Brasil. Para intérpretes e cinéfilos em geral interessados em conferir Chuchotage, porém, Tóth avisa: “ponho todos os meus filmes no meu site, barnabastoth.com, depois que eles encerram sua vida comercial em salas e mostras de cinema”. Chuchotage, portanto, deve estar disponível na internet dentro de mais ou menos um ano.

A VOX assistiu ao filme, cujo título usa o termo francês que descreve a modalidade conhecida no Brasil como “sussurrada” – situação em que apenas uma pessoa precisa do intérprete, e este faz a tradução simultânea em voz baixa, ao pé do ouvido do cliente. Embora Chuchotage não mostre esse tipo de tradução, e sim a tradicional simultânea feita numa cabine, com fones de ouvido para a plateia, a ideia do sussurro indica a situação que se desenrola na breve trama: dois intérpretes homens têm um canal direto para se comunicar, pelos fones de ouvido, com uma única e bela ouvinte. A partir dessa ideia se desenrolam os 16 minutos de filme.

À exceção da conexão entre os tradutores e a moça (na qual ambos deixam a isenção e a neutralidade de lado – algo impensável para um profissional – e tentam conquistá-la apenas com a voz), Chuchotage mostra com realismo um dia típico para uma dupla de intérpretes: o colega (conhecido no jargão da profissão como “concabino”) que leva um sanduíche de cheiro forte para a cabine, empesteando o espaço exíguo; os temas inusitados traduzidos nas conferências (no filme, o assunto da palestra traduzida para húngaro é “mecanismos ambientais e efeitos dos condensadores à base de amônia”); a habilidade dos intérpretes de escutar uma língua, traduzir para outra e ainda fazer uma terceira atividade ao mesmo tempo (os dois personagens disputam uma versão húngara do jogo da velha); a salada de idiomas de uma conferência internacional, com tradutores de várias línguas falando todas ao mesmo tempo; ou a necessidade que os intérpretes têm de procurar seus ouvintes na plateia, para que sirvam como bússola do trabalho que está sendo feito (rir de uma piada bem traduzida ou concordar com alguma afirmação do palestrante, fazendo um aceno de cabeça, são sinais de que a tradução vai bem e todos estão acompanhando).

Na entrevista a seguir, Tóth fala sobre a ideia por trás do filme, a pesquisa que realizou para mostrar o trabalho dos intérpretes, os desafios impostos pela profissão e até sobre as particulares do idioma húngaro.

VOX: Como surgiu a ideia de Chuchotage?

Barnabás Tóth: Trabalhei como intérprete uma única vez na vida, por um dia. Foi um pesadelo. Felizmente apenas um senhor, de Luxemburgo, estava ouvindo minha tradução para o francês. No final da conferência, eu me desculpei pelo péssimo trabalho que havia feito. Isso foi há vinte anos. Em 2017, vi uma notícia sobre um concurso para roteiros de curta-metragem, e me lembrei do episódio. Inscrevi meu script, ganhei uma pequena verba de produção e rodei o filme com a produtora húngara Laokoon Filmgroup.

VOX: A representação de um dia na rotina dos intérpretes na cabine é bastante fiel à realidade. Como você se informou sobre os detalhes da profissão, como foi a pesquisa?

Tóth: Primeiro escrevi uma versão inicial do roteiro, centrada na trama, nos personagens e em suas emoções. Aí comecei a pesquisa: conversei com muitos intérpretes (húngaros e alemães) e passei horas dentro de uma cabine, numa situação real de tradução simultânea. Observei tudo atentamente, e os profissionais me contaram sobre seu cotidiano, as coisas de que gostam e não gostam no trabalho e nos colegas, casos ocorridos de verdade – como a história citada no filme, da intérprete que preparou uma sopa instantânea dentro da cabine – e falaram sobre as dificuldades da chuchotage – a interpretação sussurrada.

VOX: Na condição de cineasta, o que chama sua atenção nessa profissão a ponto de considerá-la bom material dramático para um filme?

Tóth: É uma grande responsabilidade e um trabalho mental extremamente difícil, que exige muita prática. Apesar disso, a plateia não sabe quase nada sobre os intérpretes. Na maior parte do tempo, não os vemos, mesmo que passemos um dia inteiro ouvindo sua voz. Mas os intérpretes não são heróis: são pessoas comuns, com os mesmos sentimentos, desejos e medos que todos nós.

VOX: O set de filmagem também é bastante real, semelhante a muitas salas de conferência que existem por aí. O cenário foi construído especialmente para o filme ou vocês filmaram numa locação existente?

Tóth: Demos sorte. Filmamos em novembro de 2017 numa sala de conferências de verdade, demolida logo depois. O espaço havia sido uma sala de reuniões para líderes comunistas de Budapeste, nos anos 60 e 70. Tudo o que se vê no filme é real, mas o local estava desativado quando rodamos. Gosto das cores da sala, das paredes de madeira, do fato de que as cabines ficam no fundo, como costuma ser, e são relativamente escuras. Tudo isso se encaixou bem na trama e no clima do curta.

VOX: Fale um pouco sobre sua experiência como intérprete, e por que você decidiu seguir outra carreira.

Tóth: No mesmo ano em que entrei para a Academia de Cinema de Budapeste, fui aceito no curso de formação de intérpretes para a União Europeia. Meu pai é professor de línguas, e aprendi inglês e francês na infância. Ele era muito severo, e dominar dois idiomas estrangeiros era obrigatório na minha casa. Meu pai queria que eu estudasse administração de empresas e tivesse uma carreira internacional, mas logo percebi que minha paixão era o cinema.

VOX: Por que você decidiu usar a palavra chuchotage como título do filme, considerando que essa não é a modalidade mostrada na tela? Será pela sugestão de que o sussurro estabelece um contato mais próximo entre quem fala e quem escuta?

Tóth: Gosto do som francês da palavra, que é usada em muitos idiomas – embora pouca gente conheça seu significado. É uma palavra romântica, divertida, que sugere intimidade.

VOX: Vários ditados fazem referência à dificuldade de se aprender húngaro, sua língua materna (“é o único idioma que o diabo respeita”, diz um deles). Além disso, há quem diga que uma língua representa características de seus falantes: a lógica cartesiana do alemão, o som sedutor do francês, a musicalidade do português… Quais são as particularidades do húngaro, essa língua tão distante de outras famílias, e como ele representa seu povo?

Tóth: Poxa, que pergunta difícil e complexa. Não sei se eu acharia o húngaro bonito se não fosse minha língua nativa. Os sérvios dizem que o húngaro parece um cachorro latindo de trás pra frente. Nossa gramática permite acrescentar mais e mais pedaços às palavras, e elas ficam enormes. Por exemplo: para dizer “você é uma pessoa incorruptível”, usamos o termo “megvesztegethetetlenségetekért”. Imagine o resto do idioma…

09 Jul / 2020

Parlamentares indígenas já podem fazer discursos em línguas nativas, com tradução simultânea – no Canadá

No dia 28 de janeiro, uma sessão histórica na Câmara dos Comuns do Canadá (equivalente à Câmara dos Deputados no Brasil) marcou o primeiro discurso feito da tribuna num idioma indígena, com tradução simultânea. O parlamentar Robert-Falcon Ouellette, representante da cidade de Winnipeg, dirigiu-se aos colegas em Cree – um dos mais de 60 idiomas indígenas falados no país, que o legislador aprendeu na infância, com os pais. A apresentação de Ouellette teve tradução simultânea para inglês e francês, as duas línguas oficiais do Canadá.

Tudo começou em maio do ano passado, quando esse mesmo parlamentar decidiu discursar em Cree pela primeira vez, sem a ajuda de intérpretes – numa espécie de protesto linguístico. Na ocasião, os demais legisladores não compreenderam uma palavra sequer. O episódio deu início a um debate: por que as sessões do parlamento canadense tinham tradução simultânea apenas entre francês e inglês? Por que os idiomas indígenas ficavam de fora? “Se não usarmos nossas línguas aqui, ninguém mais vai usar”, argumentou Ouellette, descendente de uma das chamadas “Primeiras Nações” canadenses, em entrevista ao Winnipeg Free Press.

Seguiram-se meses de debate, e finalmente o Parlamento decidiu que a casa tem a obrigação de oferecer tradução simultânea para membros que desejarem falar idiomas indígenas. O recente discurso de Ouellette pôs em prática a nova diretriz. O parlamentar tratou de um tema que, a princípio, parecia não guardar relação direta com os povos nativos: o papel relevante desempenhado por forças canadenses na desocupação da Holanda invadida pela Alemanha nazista, durante a Segunda Guerra. “Pouca gente sabe, mas milhares de representantes das Primeiras Nações se alistaram no exército, na marinha e na aeronáutica. Essa história precisa ser conhecida”, disse Ouellette, que decidiu contá-la na língua original dos soldados em questão.

A ideia, porém, é que os idiomas indígenas sejam usados também em discussões de interesse geral – questões orçamentárias, decisões sobre saúde, segurança e educação.

O parlamento, entretanto, vai enfrentar um problema conhecido nos tribunais do país: a escassez de intérpretes das línguas nativas. Em audiências e julgamentos, a presença do intérprete já é prevista na Carta de Direitos e Liberdades do Canadá – que determina serviço gratuito de interpretação caso o réu não compreenda o idioma falado por juízes, advogados e testemunhas. Mas encontrar esses profissionais de tradução tem sido um desafio: algumas pessoas com fluência nos idiomas não têm a formação técnica exigida para fazer tradução simultânea; outras são amigas ou conhecidas dos réus, o que prejudica a isenção necessária para o exercício da profissão; em determinadas comunidades, trabalhar para o estado – apontado pelos indígenas como responsável pelo massacre de milhares de representantes das Primeiras Nações, ao longo de séculos – é mal visto. A dificuldade já levou alguns julgamentos a serem cancelados. Mesmo assim, representantes dos povos indígenas esperam que agora, com a exigência de tradução também na Câmara dos Comuns, mais gente se interesse pela interpretação de línguas nativas – e contribua para preservar esses idiomas, sua cultura e sua história.

09 Jul / 2020

O caso Marina Gross: uma ameaça aos princípios éticos do trabalho dos intérpretes

“A intimação seria um golpe considerável à confiança depositada no trabalho dos intérpretes”. A declaração é de Barry Slaughter Olsen, profissional experiente e professor de interpretação de conferências no Middlebury Institute of International Studies, na Califórnia. Em entrevista à rede de TV a cabo americana CNN, Olsen comentou a possibilidade de que a intérprete Marina Gross, que traduziu o encontro privado entre Donald Trump e Vladimir Putin em julho do ano passado, seja chamada a depor no congresso americano. O assunto voltou à baila nos últimos dias, depois que uma reportagem do jornal Washington Post jogou mais lenha na fogueira alimentada pelos malabarismos de Trump para ocultar o conteúdo da conversa particular com o presidente russo. Democratas favoráveis ao depoimento de Gross afirmam que os cidadãos americanos têm direito de conhecer o teor do encontro. Os intérpretes acreditam que a intimação abriria um precedente delicado e colocaria em risco um dos mais importantes princípios éticos da profissão: a confidencialidade. Confira aqui a entrevista de Olsen à CNN.

09 Jul / 2020

“Sorbet de Chayotte”, “The Japanese cop”, “Papá Pitufo”: A difícil arte de traduzir (literalmente) a política brasileira

Antes de mais nada, vamos logo esclarecendo: este é um texto sobre tradução, e não sobre política. A VOX não se manifesta sobre inclinações eleitorais, mas não resiste a um bom motivo para falar sobre questões tradutórias. E a política brasileira é um prato cheio para quem gosta de um belo desafio linguístico. Como verter “pixuleco” para um idioma estrangeiro? Como explicar para um americano, um dinamarquês ou um italiano quem é o “japonês da federal”? Como descrever em outra língua a cisão entre “coxinhas e mortadelas”?

Quando esse tipo de expressão aparece numa palestra e o intérprete tem poucos segundos para bolar uma solução em inglês (ou em qualquer outro idioma), é preciso pensar rápido e chegar a uma versão curta, clara, que não tome muito tempo da tradução e seja compreendida pelos estrangeiros da plateia que dependem da tradução simultânea. Por isso a VOX decidiu conversar com outra categoria profissional que se depara com desafios semelhantes, ainda que num contexto diferente: os correspondentes da imprensa estrangeira que cobrem o noticiário do Brasil. Cabe a eles explicar, lá fora, o que acontece por aqui.

Há alguns dias o diário francês Le Monde publicou uma reportagem sobre Geraldo Alckmin. Logo no primeiro parágrafo, a jornalista Claire Gatinois resumiu a imagem que colou no candidato do PSDB: “sorbet de chayotte”. Além de traduzir o “picolé de chuchu” para a língua de Voltaire, Claire também acrescentou uma explicação para os leitores francófonos: “o apelido vem de uma cucurbitácea insípida, encontrada em países de clima quente”. À semelhança do que ocorre com intérpretes e tradutores, a jornalista vive esbarrando em expressões difíceis de traduzir. “O português tem palavras específicas e engraçadas, que não encontram equivalente em francês”, contou ela em entrevista à VOX. “´Chulé’ é uma delas. Na hora de cobrir política, a situação é ainda mais complicada”, continua a jornalista, que vive em São Paulo desde 2015.

Claire cita como exemplo a expressão “posto Ipiranga” – alcunha dada a Paulo Guedes, guru econômico de Jair Bolsonaro, que responder a qualquer pergunta sobre economia feita ao candidato. “Seria complicado explicar ao leitor francês que o apelido vem de uma campanha publicitária, porque aí eu teria de descrever as propagandas… Ficaria confuso demais”, diz ela. Para driblar o problema, a repórter do Le Monde optou por uma solução mais simples e conhecida de seu público: Paulo Guedes virou “un couteau suisse”, ou “um canivete suíço” com várias funções. “A expressão passa a mesma ideia, de um jeito mais fácil de entender”.

A saída adotada por Claire é utilizada com frequência na tradução simultânea. Diante de um conceito muito local ou específico de determinada cultura, o intérprete quase nunca tem tempo de dar toda a explicação necessária, e precisa encontrar um equivalente rápido e de fácil compreensão para seus ouvintes – mesmo que a tradução se afaste um pouco do original. Por ser ao vivo, falada e não permitir notas de rodapé (recurso usado nos livros para as Notas do Tradutor), a interpretação de conferências pede soluções imediatas. Quando não há uma tradução exata, o que importa é transmitir a mensagem e preservar o sentido, como fez a correspondente francesa com o canivete suíço.

Alguns termos surgidos na disputa eleitoral deste ano são mais simples de traduzir. Um deles é o #elenao da campanha anti-Bolsonaro – que ganha cada vez mais corpo, a ponto de ter virado reportagem no jornal americano The New York Times. Na matéria escrita por Shasta Darlington, chefe da sucursal do diário no Rio, a hashtag virou #nothim. Mas a política brasileira é cheia de “jabuticabas”: situações, palavras e expressões que só existem aqui, difíceis de explicar para um estrangeiro. Na redação do El País, não raro os jornalistas e a equipe de tradutores fixos da publicação se envolvem em debates sobre a melhor forma de dizer tal ou qual coisa. O mesmo “picolé de chuchu” traduzido para o francês também já foi chamado de “helado de chayote” pelo veículo espanhol. “Recentemente optamos por ‘un boniato’, uma espécie de batata doce que também é sinônimo de comida insossa”, explica Rodrigo Leite, coordenador de traduções do El País Brasil, em conversa com a VOX.

O diário argentino Clarín fez uma extensa reportagem sobre candidatos inusitados a cargos legislativos – gente como Tiririca, descrito no texto como “um payaso analfabeto” (um palhaço analfabeto). O editor do texto, Abel Escudero Zadrayec, surpreendeu-se ao topar com Roberto Braga de Oliveira, candidato a deputado pelo Maranhão, que se apresenta como Macaco Velho (“Mono Viejo”) e aparece nos santinhos de campanha vestindo uma camisa do… Boca Juniors. Mas a tradução mais divertida foi para o candidato Adelmo, do Distrito Federal: “Papá Pitufo”. O nome em português que deu margem a essa engraçada expressão em castelhano está no final desta reportagem.

Em alguns casos, ao contrário do exemplo do canivete suíço, o correspondente não escapa de uma longa explicação – sob pena de deixar o leitor no escuro, sem entender as histórias surreais que só a política brasileira é capaz de produzir. Num artigo sobre “the Pixuleco baloon”, publicado durante as manifestações pró-impeachment, o jornal Los Angeles Times teve de fazer vários esclarecimentos para que os americanos compreendessem o que era o tal boneco: “O balão inflável foi batizado com uma gíria que significa propina em português”, esclareceu a correspondente Jill Langlois. E continuou: “The Pixuleco leva no peito o número 171, artigo do código penal que tipifica o crime de estelionato”. Na época do impeachment, o Washington Post tentou fazer seus leitores entenderem a cisão entre coxinhas e mortadelas. Os primeiros foram descritos como o estereótipo do “playboy rico e burguês, que usa camisa polo em tons pastel, óculos Ray-Ban comprados em Miami e um relógio grande que ganhou do pai no Natal […], cujo apelido vem de uma famosa comida de rua do Brasil”. Já os segundos, também chamados de “petralhas”, são rotulados como “gente preguiçosa que vive de pensões do governo, sindicalistas em greve, universitários barbados que estudam Sociologia”. O Post até tentou ensinar os americanos a pronunciar os dois termos: “koh-SHEEN-yas” e “pet-RAL-yas”.

Entre os correspondentes de língua inglesa que atuam no Brasil, alguns termos estão consagrados: “Operation Car Wash”, para a Operação Lava Jato, ou “coup monger”, para golpista. O espanhol La Vanguardia, de Barcelona, fala da “investigación Lava Coches”. Há também traduções para expressões que os brasileiros usam há tempos com grande naturalidade, sem pensar duas vezes – mas que não fazem sentido para ouvidos estrangeiros. Alguns exemplos: “the MacGyvering out of difficult situations” (que transforma em verbo o engenhoso personagem da TV McGyver para descrever nosso “jeitinho” de driblar dificuldades, na explanação do Washington Post); “to end up with pizza” (acabar em pizza, no britânico The Guardian) ou “he steals, but he acts” (rouba mas faz, na edição da revista The Economist que estampou Bolsonaro na capa com a manchete “uma ameaça para a América Latina”). O mesmo Guardian foi direto ao ponto num perfil do policial de ascendência oriental que ganhou fama nas fotos de primeira página, escoltando figurões algemados: o “japonês da Federal” virou “the Japanese cop”. Diante de todos esses abacaxis que a imprensa estrangeira precisa descascar na hora de traduzir – literalmente – nosso país, vale lembrar a famosa frase atribuída a Tom Jobim: “o Brasil não é para principiantes”. Isso vale tanto para jornalistas quanto para tradutores.

P.S. Para quem chegou até aqui, vai a resposta sobre o Papá Pitufo: é assim que os argentinos chamam o personagem Papai Smurf dos desenhos animados. E é assim – isso mesmo, como Papai Smurf – que o candidato Adelmo se apresenta nas urnas.

09 Jul / 2020

Trump, Putin e o dilema ético de uma intérprete

O sigilo é um princípio inviolável em qualquer conversa entre médico e paciente, advogado e cliente, jornalista e fonte, padre e confessando. Mas e o segredo entre um intérprete e seu cliente? Pode um tradutor ser obrigado a revelar o conteúdo de um encontro a portas fechadas, entre duas pessoas que falam idiomas diferentes, do qual ele foi testemunha?

Essa questão se transformou numa polêmica de grandes proporções na semana passada. De um lado, o presidente americano Donald Trump; de outro, o russo Vladimir Putin. Entre ambos está Marina Gross, intérprete de russo do Departamento de Estado americano. Além do tradutor que trabalha para Putin, Marina foi a única pessoa presente à reunião particular entre os dois chefes de estado, realizada em 16 de julho em Helsinki. Depois de declarações sucessivas e (como sempre) controversas de Trump sobre o teor do colóquio – e sobre o que teria sido dito acerca da influência russa na eleição que derrotou Hillary Clinton em 2016 –, alguns democratas vêm pedindo que a intérprete seja convocada a depor na comissão de relações exteriores do senado. Marina, afirmam os oposicionistas, precisa revelar aos cidadãos americanos o que o presidente disse a Putin num encontro oficial, em que Trump representava o povo dos Estados Unidos.

A comunidade internacional de intérpretes não tardou a manifestar preocupação. “Nosso trabalho só tem valor quando somos capazes de traduzir com fidelidade, precisão e manter sigilo sobre o que escutamos”, disse ao The New York Times a intérprete de russo Yuliya Tsaplina. “Se ela [Gross] for intimada a contar o que ouviu, o episódio pode acabar com a confiança na nossa profissão”. Edna Santizo, representante da Associação Americana de Tradutores, acrescenta: “se esse precedente for aberto, é pouco provável que outros chefes de estado e diplomatas consigam se sentir à vontade na presença de um intérprete”.

Tanto nos Estados Unidos quanto em qualquer lugar onde a interpretação é uma atividade organizada, o código de ética dos tradutores profissionais é categórico: “O intérprete obriga-se à estrita observância do segredo profissional, não podendo divulgar a quem quer que seja qualquer informação obtida no decorrer de sua atividade, salvo no caso de reuniões abertas ao público em geral”. É o que diz o artigo 2º do regulamento da Associação Profissional dos Intérpretes de Conferência (APIC), entidade que representa a categoria no Brasil. Textos semelhantes podem ser encontrados em organizações de diversos países, e muitas delas saíram em defesa da intérprete e dos valores éticos da profissão. A Associação Internacional de Intérpretes de Conferência (AIIC), com sede em Genebra, divulgou um comunicado afirmando que “desde a Segunda Guerra Mundial observa-se o princípio fundamental de que um intérprete jamais será chamado a prestar depoimento”.

No Brasil, seria extremamente difícil fazer com que um tradutor fosse forçado a contar, em juízo, o que ouviu no exercício do trabalho. Tanto o artigo 5º da Constituição quanto o artigo 154 do código penal deixam claro que o sigilo profissional é assegurado por lei. “Por conta das diferenças entre os princípios que norteiam a fase de produção de provas numa investigação no Brasil e nos Estados Unidos, é pouco provável que, aqui, o intérprete seja convocado a depor”, explica Luciana Carvalho Fonseca, professora do Departamento de Letas Modernas da USP, intérprete de conferências e bacharel em Direito. “Isso se deve à proibição estabelecida pelo Código de Processo Penal brasileiro, que protege o sigilo profissional. Entretanto, o artigo estabelece que, se a parte protegida pelo sigilo concordar, o tradutor poderá depor. A interpretação envolve pelo menos duas partes além do intérprete, e qualquer uma delas também pode argumentar que o conteúdo é confidencial. Caberá ao juiz determinar quem está sujeito à proibição”.

Já a lei americana permite, sim, que um intérprete seja chamado a prestar testemunho. “Isso vem ocorrendo com mais frequência em anos recentes”, escreveu o jornalista Jazz Shaw num texto sobre o imbróglio. “A ordem judicial se sobrepõe ao código de ética que determina o caráter secreto da conversa traduzida”, completa ele. O argumento que vem sendo usado pelos defensores da intimação está resumido na declaração da senadora democrata Jeanne Shaheen, líder do movimento que quer ouvir Gross. “A intérprete é uma funcionária pública, e trabalha para o governo americano”, afirma Shaheen. “Ela deve prestar contas ao povo e ao Congresso sobre as promessas feitas pelo presidente Trump ao Kremlin”.

Não será fácil colocar Marina Gross diante da comissão parlamentar. Alguns juristas dos Estados Unidos afirmam que Trump poderia impedir a intimação, alegando que a intérprete goza dos mesmos privilégios e proteções que o presidente da nação – e que o depoimento colocaria em risco a segurança nacional. Além disso, há quem sustente que o pleito dos democratas pode ser um tiro no pé. “Senadores e deputados também fazem uso constante de intérpretes em seus encontros privados”, diz um integrante do governo, que falou ao New York Times sob a condição de não ter seu nome revelado. Trocando em miúdos: se a moda pega, nada garante que o tradutor de um desses legisladores oposicionistas também não possa ser convocado a falar perante um juiz.

A confusão envolvendo a tradutora de Trump traz à baila duas teorias conflitantes no mundo da interpretação. De acordo com a primeira, o profissional que faz a ponte entre dois idiomas é um “conduto linguístico”, mero transportador da mensagem entre uma língua e outra. “Essa teoria está ultrapassada na academia, mas ainda é adotada por algumas instituições”, esclarece Luciana. “O intérprete seria apenas um ‘equipamento’. Seguindo esse raciocínio, aqueles que defendem que a intérprete de Trump não deve depor comparam a conversa traduzida a um diálogo grampeado, no qual a profissional ali presente seria equivalente ao próprio dispositivo do grampo”. A segunda teoria afirma que, embora o intérprete faça a ligação entre dois idiomas de forma isenta e sem manifestar opiniões pessoais, ele é sim um sujeito, e não um simples transmissor.

A polêmica deve prosseguir por alguns dias, até que se decida se Marisa Gross será ou não intimada. Enquanto isso, a intérprete se verá numa situação extremamente delicada, na qual nenhum tradutor deseja estar. Não importa se acompanha um encontro entre políticos de alta patente, uma reunião de negócios entre executivos de diferentes países, uma conversa sobre estratégias comerciais, compra e venda de ações, patentes de novos medicamentos: o intérprete preserva a confidencialidade de qualquer conteúdo traduzido (à exceção, é claro, de eventos abertos, transmitidos pela internet, etc.). Assim deve ser no caso do encontro entre Trump e Putin – e sempre.