09 Jul / 2020

O melhor filme (não) indicado ao Oscar – pelo menos para os intérpretes

Há 20 anos o jovem húngaro Barnabás Tóth teve uma única experiência de trabalho como intérprete de conferências. “Foi um pesadelo”, lembra ele, em entrevista exclusiva concedida por e-mail ao blog Outras Palavras, da VOX. “Felizmente, apenas um senhor ouviu minha tradução para o francês. No final do dia, eu me desculpei pelo péssimo trabalho que havia feito”. O episódio traumático ficou na memória de Tóth, que acabou abandonando a tradução simultânea para ser cineasta. No ano passado ele lançou Chuchotage, curta-metragem que mostra um dia de trabalho na rotina de dois intérpretes de húngaro (esses sim, profissionais experientes) e de sua única ouvinte na plateia.

O filme foi “candidato a candidato” ao Oscar 2019, mas não passou pela peneira final (e por isso não está entre os finalistas que disputarão a estatueta na cerimônia do domingo, 24 de fevereiro). Fora da premiação, infelizmente diminuem as chances de que o título seja exibido em festivais pelo mundo e chegue ao Brasil. Para intérpretes e cinéfilos em geral interessados em conferir Chuchotage, porém, Tóth avisa: “ponho todos os meus filmes no meu site, barnabastoth.com, depois que eles encerram sua vida comercial em salas e mostras de cinema”. Chuchotage, portanto, deve estar disponível na internet dentro de mais ou menos um ano.

A VOX assistiu ao filme, cujo título usa o termo francês que descreve a modalidade conhecida no Brasil como “sussurrada” – situação em que apenas uma pessoa precisa do intérprete, e este faz a tradução simultânea em voz baixa, ao pé do ouvido do cliente. Embora Chuchotage não mostre esse tipo de tradução, e sim a tradicional simultânea feita numa cabine, com fones de ouvido para a plateia, a ideia do sussurro indica a situação que se desenrola na breve trama: dois intérpretes homens têm um canal direto para se comunicar, pelos fones de ouvido, com uma única e bela ouvinte. A partir dessa ideia se desenrolam os 16 minutos de filme.

À exceção da conexão entre os tradutores e a moça (na qual ambos deixam a isenção e a neutralidade de lado – algo impensável para um profissional – e tentam conquistá-la apenas com a voz), Chuchotage mostra com realismo um dia típico para uma dupla de intérpretes: o colega (conhecido no jargão da profissão como “concabino”) que leva um sanduíche de cheiro forte para a cabine, empesteando o espaço exíguo; os temas inusitados traduzidos nas conferências (no filme, o assunto da palestra traduzida para húngaro é “mecanismos ambientais e efeitos dos condensadores à base de amônia”); a habilidade dos intérpretes de escutar uma língua, traduzir para outra e ainda fazer uma terceira atividade ao mesmo tempo (os dois personagens disputam uma versão húngara do jogo da velha); a salada de idiomas de uma conferência internacional, com tradutores de várias línguas falando todas ao mesmo tempo; ou a necessidade que os intérpretes têm de procurar seus ouvintes na plateia, para que sirvam como bússola do trabalho que está sendo feito (rir de uma piada bem traduzida ou concordar com alguma afirmação do palestrante, fazendo um aceno de cabeça, são sinais de que a tradução vai bem e todos estão acompanhando).

Na entrevista a seguir, Tóth fala sobre a ideia por trás do filme, a pesquisa que realizou para mostrar o trabalho dos intérpretes, os desafios impostos pela profissão e até sobre as particulares do idioma húngaro.

VOX: Como surgiu a ideia de Chuchotage?

Barnabás Tóth: Trabalhei como intérprete uma única vez na vida, por um dia. Foi um pesadelo. Felizmente apenas um senhor, de Luxemburgo, estava ouvindo minha tradução para o francês. No final da conferência, eu me desculpei pelo péssimo trabalho que havia feito. Isso foi há vinte anos. Em 2017, vi uma notícia sobre um concurso para roteiros de curta-metragem, e me lembrei do episódio. Inscrevi meu script, ganhei uma pequena verba de produção e rodei o filme com a produtora húngara Laokoon Filmgroup.

VOX: A representação de um dia na rotina dos intérpretes na cabine é bastante fiel à realidade. Como você se informou sobre os detalhes da profissão, como foi a pesquisa?

Tóth: Primeiro escrevi uma versão inicial do roteiro, centrada na trama, nos personagens e em suas emoções. Aí comecei a pesquisa: conversei com muitos intérpretes (húngaros e alemães) e passei horas dentro de uma cabine, numa situação real de tradução simultânea. Observei tudo atentamente, e os profissionais me contaram sobre seu cotidiano, as coisas de que gostam e não gostam no trabalho e nos colegas, casos ocorridos de verdade – como a história citada no filme, da intérprete que preparou uma sopa instantânea dentro da cabine – e falaram sobre as dificuldades da chuchotage – a interpretação sussurrada.

VOX: Na condição de cineasta, o que chama sua atenção nessa profissão a ponto de considerá-la bom material dramático para um filme?

Tóth: É uma grande responsabilidade e um trabalho mental extremamente difícil, que exige muita prática. Apesar disso, a plateia não sabe quase nada sobre os intérpretes. Na maior parte do tempo, não os vemos, mesmo que passemos um dia inteiro ouvindo sua voz. Mas os intérpretes não são heróis: são pessoas comuns, com os mesmos sentimentos, desejos e medos que todos nós.

VOX: O set de filmagem também é bastante real, semelhante a muitas salas de conferência que existem por aí. O cenário foi construído especialmente para o filme ou vocês filmaram numa locação existente?

Tóth: Demos sorte. Filmamos em novembro de 2017 numa sala de conferências de verdade, demolida logo depois. O espaço havia sido uma sala de reuniões para líderes comunistas de Budapeste, nos anos 60 e 70. Tudo o que se vê no filme é real, mas o local estava desativado quando rodamos. Gosto das cores da sala, das paredes de madeira, do fato de que as cabines ficam no fundo, como costuma ser, e são relativamente escuras. Tudo isso se encaixou bem na trama e no clima do curta.

VOX: Fale um pouco sobre sua experiência como intérprete, e por que você decidiu seguir outra carreira.

Tóth: No mesmo ano em que entrei para a Academia de Cinema de Budapeste, fui aceito no curso de formação de intérpretes para a União Europeia. Meu pai é professor de línguas, e aprendi inglês e francês na infância. Ele era muito severo, e dominar dois idiomas estrangeiros era obrigatório na minha casa. Meu pai queria que eu estudasse administração de empresas e tivesse uma carreira internacional, mas logo percebi que minha paixão era o cinema.

VOX: Por que você decidiu usar a palavra chuchotage como título do filme, considerando que essa não é a modalidade mostrada na tela? Será pela sugestão de que o sussurro estabelece um contato mais próximo entre quem fala e quem escuta?

Tóth: Gosto do som francês da palavra, que é usada em muitos idiomas – embora pouca gente conheça seu significado. É uma palavra romântica, divertida, que sugere intimidade.

VOX: Vários ditados fazem referência à dificuldade de se aprender húngaro, sua língua materna (“é o único idioma que o diabo respeita”, diz um deles). Além disso, há quem diga que uma língua representa características de seus falantes: a lógica cartesiana do alemão, o som sedutor do francês, a musicalidade do português… Quais são as particularidades do húngaro, essa língua tão distante de outras famílias, e como ele representa seu povo?

Tóth: Poxa, que pergunta difícil e complexa. Não sei se eu acharia o húngaro bonito se não fosse minha língua nativa. Os sérvios dizem que o húngaro parece um cachorro latindo de trás pra frente. Nossa gramática permite acrescentar mais e mais pedaços às palavras, e elas ficam enormes. Por exemplo: para dizer “você é uma pessoa incorruptível”, usamos o termo “megvesztegethetetlenségetekért”. Imagine o resto do idioma…

09 Jul / 2020

Parlamentares indígenas já podem fazer discursos em línguas nativas, com tradução simultânea – no Canadá

No dia 28 de janeiro, uma sessão histórica na Câmara dos Comuns do Canadá (equivalente à Câmara dos Deputados no Brasil) marcou o primeiro discurso feito da tribuna num idioma indígena, com tradução simultânea. O parlamentar Robert-Falcon Ouellette, representante da cidade de Winnipeg, dirigiu-se aos colegas em Cree – um dos mais de 60 idiomas indígenas falados no país, que o legislador aprendeu na infância, com os pais. A apresentação de Ouellette teve tradução simultânea para inglês e francês, as duas línguas oficiais do Canadá.

Tudo começou em maio do ano passado, quando esse mesmo parlamentar decidiu discursar em Cree pela primeira vez, sem a ajuda de intérpretes – numa espécie de protesto linguístico. Na ocasião, os demais legisladores não compreenderam uma palavra sequer. O episódio deu início a um debate: por que as sessões do parlamento canadense tinham tradução simultânea apenas entre francês e inglês? Por que os idiomas indígenas ficavam de fora? “Se não usarmos nossas línguas aqui, ninguém mais vai usar”, argumentou Ouellette, descendente de uma das chamadas “Primeiras Nações” canadenses, em entrevista ao Winnipeg Free Press.

Seguiram-se meses de debate, e finalmente o Parlamento decidiu que a casa tem a obrigação de oferecer tradução simultânea para membros que desejarem falar idiomas indígenas. O recente discurso de Ouellette pôs em prática a nova diretriz. O parlamentar tratou de um tema que, a princípio, parecia não guardar relação direta com os povos nativos: o papel relevante desempenhado por forças canadenses na desocupação da Holanda invadida pela Alemanha nazista, durante a Segunda Guerra. “Pouca gente sabe, mas milhares de representantes das Primeiras Nações se alistaram no exército, na marinha e na aeronáutica. Essa história precisa ser conhecida”, disse Ouellette, que decidiu contá-la na língua original dos soldados em questão.

A ideia, porém, é que os idiomas indígenas sejam usados também em discussões de interesse geral – questões orçamentárias, decisões sobre saúde, segurança e educação.

O parlamento, entretanto, vai enfrentar um problema conhecido nos tribunais do país: a escassez de intérpretes das línguas nativas. Em audiências e julgamentos, a presença do intérprete já é prevista na Carta de Direitos e Liberdades do Canadá – que determina serviço gratuito de interpretação caso o réu não compreenda o idioma falado por juízes, advogados e testemunhas. Mas encontrar esses profissionais de tradução tem sido um desafio: algumas pessoas com fluência nos idiomas não têm a formação técnica exigida para fazer tradução simultânea; outras são amigas ou conhecidas dos réus, o que prejudica a isenção necessária para o exercício da profissão; em determinadas comunidades, trabalhar para o estado – apontado pelos indígenas como responsável pelo massacre de milhares de representantes das Primeiras Nações, ao longo de séculos – é mal visto. A dificuldade já levou alguns julgamentos a serem cancelados. Mesmo assim, representantes dos povos indígenas esperam que agora, com a exigência de tradução também na Câmara dos Comuns, mais gente se interesse pela interpretação de línguas nativas – e contribua para preservar esses idiomas, sua cultura e sua história.

09 Jul / 2020

O caso Marina Gross: uma ameaça aos princípios éticos do trabalho dos intérpretes

“A intimação seria um golpe considerável à confiança depositada no trabalho dos intérpretes”. A declaração é de Barry Slaughter Olsen, profissional experiente e professor de interpretação de conferências no Middlebury Institute of International Studies, na Califórnia. Em entrevista à rede de TV a cabo americana CNN, Olsen comentou a possibilidade de que a intérprete Marina Gross, que traduziu o encontro privado entre Donald Trump e Vladimir Putin em julho do ano passado, seja chamada a depor no congresso americano. O assunto voltou à baila nos últimos dias, depois que uma reportagem do jornal Washington Post jogou mais lenha na fogueira alimentada pelos malabarismos de Trump para ocultar o conteúdo da conversa particular com o presidente russo. Democratas favoráveis ao depoimento de Gross afirmam que os cidadãos americanos têm direito de conhecer o teor do encontro. Os intérpretes acreditam que a intimação abriria um precedente delicado e colocaria em risco um dos mais importantes princípios éticos da profissão: a confidencialidade. Confira aqui a entrevista de Olsen à CNN.

09 Jul / 2020

“Sorbet de Chayotte”, “The Japanese cop”, “Papá Pitufo”: A difícil arte de traduzir (literalmente) a política brasileira

Antes de mais nada, vamos logo esclarecendo: este é um texto sobre tradução, e não sobre política. A VOX não se manifesta sobre inclinações eleitorais, mas não resiste a um bom motivo para falar sobre questões tradutórias. E a política brasileira é um prato cheio para quem gosta de um belo desafio linguístico. Como verter “pixuleco” para um idioma estrangeiro? Como explicar para um americano, um dinamarquês ou um italiano quem é o “japonês da federal”? Como descrever em outra língua a cisão entre “coxinhas e mortadelas”?

Quando esse tipo de expressão aparece numa palestra e o intérprete tem poucos segundos para bolar uma solução em inglês (ou em qualquer outro idioma), é preciso pensar rápido e chegar a uma versão curta, clara, que não tome muito tempo da tradução e seja compreendida pelos estrangeiros da plateia que dependem da tradução simultânea. Por isso a VOX decidiu conversar com outra categoria profissional que se depara com desafios semelhantes, ainda que num contexto diferente: os correspondentes da imprensa estrangeira que cobrem o noticiário do Brasil. Cabe a eles explicar, lá fora, o que acontece por aqui.

Há alguns dias o diário francês Le Monde publicou uma reportagem sobre Geraldo Alckmin. Logo no primeiro parágrafo, a jornalista Claire Gatinois resumiu a imagem que colou no candidato do PSDB: “sorbet de chayotte”. Além de traduzir o “picolé de chuchu” para a língua de Voltaire, Claire também acrescentou uma explicação para os leitores francófonos: “o apelido vem de uma cucurbitácea insípida, encontrada em países de clima quente”. À semelhança do que ocorre com intérpretes e tradutores, a jornalista vive esbarrando em expressões difíceis de traduzir. “O português tem palavras específicas e engraçadas, que não encontram equivalente em francês”, contou ela em entrevista à VOX. “´Chulé’ é uma delas. Na hora de cobrir política, a situação é ainda mais complicada”, continua a jornalista, que vive em São Paulo desde 2015.

Claire cita como exemplo a expressão “posto Ipiranga” – alcunha dada a Paulo Guedes, guru econômico de Jair Bolsonaro, que responder a qualquer pergunta sobre economia feita ao candidato. “Seria complicado explicar ao leitor francês que o apelido vem de uma campanha publicitária, porque aí eu teria de descrever as propagandas… Ficaria confuso demais”, diz ela. Para driblar o problema, a repórter do Le Monde optou por uma solução mais simples e conhecida de seu público: Paulo Guedes virou “un couteau suisse”, ou “um canivete suíço” com várias funções. “A expressão passa a mesma ideia, de um jeito mais fácil de entender”.

A saída adotada por Claire é utilizada com frequência na tradução simultânea. Diante de um conceito muito local ou específico de determinada cultura, o intérprete quase nunca tem tempo de dar toda a explicação necessária, e precisa encontrar um equivalente rápido e de fácil compreensão para seus ouvintes – mesmo que a tradução se afaste um pouco do original. Por ser ao vivo, falada e não permitir notas de rodapé (recurso usado nos livros para as Notas do Tradutor), a interpretação de conferências pede soluções imediatas. Quando não há uma tradução exata, o que importa é transmitir a mensagem e preservar o sentido, como fez a correspondente francesa com o canivete suíço.

Alguns termos surgidos na disputa eleitoral deste ano são mais simples de traduzir. Um deles é o #elenao da campanha anti-Bolsonaro – que ganha cada vez mais corpo, a ponto de ter virado reportagem no jornal americano The New York Times. Na matéria escrita por Shasta Darlington, chefe da sucursal do diário no Rio, a hashtag virou #nothim. Mas a política brasileira é cheia de “jabuticabas”: situações, palavras e expressões que só existem aqui, difíceis de explicar para um estrangeiro. Na redação do El País, não raro os jornalistas e a equipe de tradutores fixos da publicação se envolvem em debates sobre a melhor forma de dizer tal ou qual coisa. O mesmo “picolé de chuchu” traduzido para o francês também já foi chamado de “helado de chayote” pelo veículo espanhol. “Recentemente optamos por ‘un boniato’, uma espécie de batata doce que também é sinônimo de comida insossa”, explica Rodrigo Leite, coordenador de traduções do El País Brasil, em conversa com a VOX.

O diário argentino Clarín fez uma extensa reportagem sobre candidatos inusitados a cargos legislativos – gente como Tiririca, descrito no texto como “um payaso analfabeto” (um palhaço analfabeto). O editor do texto, Abel Escudero Zadrayec, surpreendeu-se ao topar com Roberto Braga de Oliveira, candidato a deputado pelo Maranhão, que se apresenta como Macaco Velho (“Mono Viejo”) e aparece nos santinhos de campanha vestindo uma camisa do… Boca Juniors. Mas a tradução mais divertida foi para o candidato Adelmo, do Distrito Federal: “Papá Pitufo”. O nome em português que deu margem a essa engraçada expressão em castelhano está no final desta reportagem.

Em alguns casos, ao contrário do exemplo do canivete suíço, o correspondente não escapa de uma longa explicação – sob pena de deixar o leitor no escuro, sem entender as histórias surreais que só a política brasileira é capaz de produzir. Num artigo sobre “the Pixuleco baloon”, publicado durante as manifestações pró-impeachment, o jornal Los Angeles Times teve de fazer vários esclarecimentos para que os americanos compreendessem o que era o tal boneco: “O balão inflável foi batizado com uma gíria que significa propina em português”, esclareceu a correspondente Jill Langlois. E continuou: “The Pixuleco leva no peito o número 171, artigo do código penal que tipifica o crime de estelionato”. Na época do impeachment, o Washington Post tentou fazer seus leitores entenderem a cisão entre coxinhas e mortadelas. Os primeiros foram descritos como o estereótipo do “playboy rico e burguês, que usa camisa polo em tons pastel, óculos Ray-Ban comprados em Miami e um relógio grande que ganhou do pai no Natal […], cujo apelido vem de uma famosa comida de rua do Brasil”. Já os segundos, também chamados de “petralhas”, são rotulados como “gente preguiçosa que vive de pensões do governo, sindicalistas em greve, universitários barbados que estudam Sociologia”. O Post até tentou ensinar os americanos a pronunciar os dois termos: “koh-SHEEN-yas” e “pet-RAL-yas”.

Entre os correspondentes de língua inglesa que atuam no Brasil, alguns termos estão consagrados: “Operation Car Wash”, para a Operação Lava Jato, ou “coup monger”, para golpista. O espanhol La Vanguardia, de Barcelona, fala da “investigación Lava Coches”. Há também traduções para expressões que os brasileiros usam há tempos com grande naturalidade, sem pensar duas vezes – mas que não fazem sentido para ouvidos estrangeiros. Alguns exemplos: “the MacGyvering out of difficult situations” (que transforma em verbo o engenhoso personagem da TV McGyver para descrever nosso “jeitinho” de driblar dificuldades, na explanação do Washington Post); “to end up with pizza” (acabar em pizza, no britânico The Guardian) ou “he steals, but he acts” (rouba mas faz, na edição da revista The Economist que estampou Bolsonaro na capa com a manchete “uma ameaça para a América Latina”). O mesmo Guardian foi direto ao ponto num perfil do policial de ascendência oriental que ganhou fama nas fotos de primeira página, escoltando figurões algemados: o “japonês da Federal” virou “the Japanese cop”. Diante de todos esses abacaxis que a imprensa estrangeira precisa descascar na hora de traduzir – literalmente – nosso país, vale lembrar a famosa frase atribuída a Tom Jobim: “o Brasil não é para principiantes”. Isso vale tanto para jornalistas quanto para tradutores.

P.S. Para quem chegou até aqui, vai a resposta sobre o Papá Pitufo: é assim que os argentinos chamam o personagem Papai Smurf dos desenhos animados. E é assim – isso mesmo, como Papai Smurf – que o candidato Adelmo se apresenta nas urnas.

09 Jul / 2020

Trump, Putin e o dilema ético de uma intérprete

O sigilo é um princípio inviolável em qualquer conversa entre médico e paciente, advogado e cliente, jornalista e fonte, padre e confessando. Mas e o segredo entre um intérprete e seu cliente? Pode um tradutor ser obrigado a revelar o conteúdo de um encontro a portas fechadas, entre duas pessoas que falam idiomas diferentes, do qual ele foi testemunha?

Essa questão se transformou numa polêmica de grandes proporções na semana passada. De um lado, o presidente americano Donald Trump; de outro, o russo Vladimir Putin. Entre ambos está Marina Gross, intérprete de russo do Departamento de Estado americano. Além do tradutor que trabalha para Putin, Marina foi a única pessoa presente à reunião particular entre os dois chefes de estado, realizada em 16 de julho em Helsinki. Depois de declarações sucessivas e (como sempre) controversas de Trump sobre o teor do colóquio – e sobre o que teria sido dito acerca da influência russa na eleição que derrotou Hillary Clinton em 2016 –, alguns democratas vêm pedindo que a intérprete seja convocada a depor na comissão de relações exteriores do senado. Marina, afirmam os oposicionistas, precisa revelar aos cidadãos americanos o que o presidente disse a Putin num encontro oficial, em que Trump representava o povo dos Estados Unidos.

A comunidade internacional de intérpretes não tardou a manifestar preocupação. “Nosso trabalho só tem valor quando somos capazes de traduzir com fidelidade, precisão e manter sigilo sobre o que escutamos”, disse ao The New York Times a intérprete de russo Yuliya Tsaplina. “Se ela [Gross] for intimada a contar o que ouviu, o episódio pode acabar com a confiança na nossa profissão”. Edna Santizo, representante da Associação Americana de Tradutores, acrescenta: “se esse precedente for aberto, é pouco provável que outros chefes de estado e diplomatas consigam se sentir à vontade na presença de um intérprete”.

Tanto nos Estados Unidos quanto em qualquer lugar onde a interpretação é uma atividade organizada, o código de ética dos tradutores profissionais é categórico: “O intérprete obriga-se à estrita observância do segredo profissional, não podendo divulgar a quem quer que seja qualquer informação obtida no decorrer de sua atividade, salvo no caso de reuniões abertas ao público em geral”. É o que diz o artigo 2º do regulamento da Associação Profissional dos Intérpretes de Conferência (APIC), entidade que representa a categoria no Brasil. Textos semelhantes podem ser encontrados em organizações de diversos países, e muitas delas saíram em defesa da intérprete e dos valores éticos da profissão. A Associação Internacional de Intérpretes de Conferência (AIIC), com sede em Genebra, divulgou um comunicado afirmando que “desde a Segunda Guerra Mundial observa-se o princípio fundamental de que um intérprete jamais será chamado a prestar depoimento”.

No Brasil, seria extremamente difícil fazer com que um tradutor fosse forçado a contar, em juízo, o que ouviu no exercício do trabalho. Tanto o artigo 5º da Constituição quanto o artigo 154 do código penal deixam claro que o sigilo profissional é assegurado por lei. “Por conta das diferenças entre os princípios que norteiam a fase de produção de provas numa investigação no Brasil e nos Estados Unidos, é pouco provável que, aqui, o intérprete seja convocado a depor”, explica Luciana Carvalho Fonseca, professora do Departamento de Letas Modernas da USP, intérprete de conferências e bacharel em Direito. “Isso se deve à proibição estabelecida pelo Código de Processo Penal brasileiro, que protege o sigilo profissional. Entretanto, o artigo estabelece que, se a parte protegida pelo sigilo concordar, o tradutor poderá depor. A interpretação envolve pelo menos duas partes além do intérprete, e qualquer uma delas também pode argumentar que o conteúdo é confidencial. Caberá ao juiz determinar quem está sujeito à proibição”.

Já a lei americana permite, sim, que um intérprete seja chamado a prestar testemunho. “Isso vem ocorrendo com mais frequência em anos recentes”, escreveu o jornalista Jazz Shaw num texto sobre o imbróglio. “A ordem judicial se sobrepõe ao código de ética que determina o caráter secreto da conversa traduzida”, completa ele. O argumento que vem sendo usado pelos defensores da intimação está resumido na declaração da senadora democrata Jeanne Shaheen, líder do movimento que quer ouvir Gross. “A intérprete é uma funcionária pública, e trabalha para o governo americano”, afirma Shaheen. “Ela deve prestar contas ao povo e ao Congresso sobre as promessas feitas pelo presidente Trump ao Kremlin”.

Não será fácil colocar Marina Gross diante da comissão parlamentar. Alguns juristas dos Estados Unidos afirmam que Trump poderia impedir a intimação, alegando que a intérprete goza dos mesmos privilégios e proteções que o presidente da nação – e que o depoimento colocaria em risco a segurança nacional. Além disso, há quem sustente que o pleito dos democratas pode ser um tiro no pé. “Senadores e deputados também fazem uso constante de intérpretes em seus encontros privados”, diz um integrante do governo, que falou ao New York Times sob a condição de não ter seu nome revelado. Trocando em miúdos: se a moda pega, nada garante que o tradutor de um desses legisladores oposicionistas também não possa ser convocado a falar perante um juiz.

A confusão envolvendo a tradutora de Trump traz à baila duas teorias conflitantes no mundo da interpretação. De acordo com a primeira, o profissional que faz a ponte entre dois idiomas é um “conduto linguístico”, mero transportador da mensagem entre uma língua e outra. “Essa teoria está ultrapassada na academia, mas ainda é adotada por algumas instituições”, esclarece Luciana. “O intérprete seria apenas um ‘equipamento’. Seguindo esse raciocínio, aqueles que defendem que a intérprete de Trump não deve depor comparam a conversa traduzida a um diálogo grampeado, no qual a profissional ali presente seria equivalente ao próprio dispositivo do grampo”. A segunda teoria afirma que, embora o intérprete faça a ligação entre dois idiomas de forma isenta e sem manifestar opiniões pessoais, ele é sim um sujeito, e não um simples transmissor.

A polêmica deve prosseguir por alguns dias, até que se decida se Marisa Gross será ou não intimada. Enquanto isso, a intérprete se verá numa situação extremamente delicada, na qual nenhum tradutor deseja estar. Não importa se acompanha um encontro entre políticos de alta patente, uma reunião de negócios entre executivos de diferentes países, uma conversa sobre estratégias comerciais, compra e venda de ações, patentes de novos medicamentos: o intérprete preserva a confidencialidade de qualquer conteúdo traduzido (à exceção, é claro, de eventos abertos, transmitidos pela internet, etc.). Assim deve ser no caso do encontro entre Trump e Putin – e sempre.

09 Jul / 2020

Google Translate: tradutor ou contraventor?

“Sua profissão está com os dias contados!”; “muito em breve ninguém mais precisará de tradução”, “o Google Translate é o tradutor do futuro”. Do futuro? Essas são algumas das frases mais ouvidas por tradutores e intérpretes de conferência nos dias de hoje, em que o Google tradutor já é uma realidade que, de fato, tira do sufoco tanto o cientista de Harvard quanto o turista que não quer fazer feio em sua viagem à Rússia.

As novas tecnologias não só ajudam como são um caminho inexorável. Já existem programas de memória de tradução que, conectados ao Google translator, sugerem frases que muitas vezes surpreendem pela criatividade. Atire a primeira pedra o tradutor que nunca teve que dar o braço a torcer diante de uma escolha terminológica da memória do Google. Mas por mais refinados que pareçam, os algoritmos ainda não superaram a intrincada capacidade de análise e julgamento do cérebro humano. Os famosos against filet (contra-filé) e grilled titty (maminha grelhada) são bons exemplos disso.

Indo além da gastronomia, a confiança cega na tecnologia pode provocar resultados um pouco mais complicados do que o constrangimento no restaurante. Em outubro do ano passado, um homem que viajava com documento de habilitação vencido foi preso no Kansas por um guarda-rodoviário que, ao notar seu parco nível de inglês, decidiu traduzir o diálogo entre os dois por meio do aplicativo de tradução. Uma resposta mal traduzida levou o rapaz para a prisão. Confira a matéria completa, do Business Insider, em inglês, no link abaixo. Em caso de dúvidas terminológicas, consulte o Google tradutor.

A Google translation isn’t enough evidence to send someone to jail, finds the judge in a narcotics case (businessinsider.com)

09 Jul / 2020

Mais uma vez, os intérpretes ajudaram a fazer história

No encontro entre o presidente americano Donald Trump e o líder norte-coreano Kim Jong-un, houve um momento em que os dois chefes de estado ficaram a sós numa sala privada, acompanhados apenas de seus respectivos tradutores. Nesses momentos históricos, os olhos do mundo prestam atenção a esses profissionais que, em outras ocasiões, costumam ser invisíveis. Os intérpretes têm um papel fundamental em encontros oficiais, cúpulas de paz e negociações de acordos internacionais e, mais do que simples linguistas, são muitas vezes diplomatas. Desta vez não foi diferente, e a imprensa internacional compreendeu a importância da tradução simultânea para o encontro entre Trump e Kim. A VOX selecionou dois artigos interessantes sobre o assunto (apenas em inglês), que você lê a seguir:

Success of Trump-Kim summit could hinge on interpreters who can ‘make or break’ talks (abcnews.com)

The pressures of being an interpreter at a high-stakes summit (npr.org)

09 Jul / 2020

Tá no filooooó! – Comemorar um gol e traduzir uma palestra: o que essas duas coisas têm em comum?

Viena, Áustria. Estádio Ernst Happel. Último amistoso do Brasil antes da estreia no Mundial da Rússia. Gabriel Jesus faz um gol e, na sequência, um gesto, como se simulasse uma ligação telefônica, homenagem à mãe, para quem, desde pequeno, tem o costume de ligar para dizer que está bem.

Os rituais de comemoração dos gols, e a respectiva especulação e palpites da torcida sobre seu significado, são um capítulo à parte no mundo do futebol – e guardam também uma relação com o trabalho dos intérpretes de conferência, como mostraremos mais adiante.

Há rituais clássicos, como o de Bebeto, na Copa de 1994, nos Estados Unidos, no jogo das quartas de final contra a Holanda, em que fez movimentos como se embalasse um bebê. Mazinho e Romário engrossaram o coro e comemoraram junto o nascimento do filho do craque. O gesto, aliás, passou a ser usado por vários outros jogadores como homenagem a seus rebentos recém nascidos.

Gerard Piqué, zagueiro do Barcelona, cruza os braços e faz um número dois com cada mão, em referência à data de aniversário da mulher, a cantora Shakira, nascida no mesmo dia que ele. O uruguaio Luis Suárez beija três dedos em homenagem aos dois filhos e a mulher. Sobre sua compulsão por morder os adversários em campo a gente fala outro dia…

Acontece que a CBF não acha assim tanta graça nas tais comemorações dos jogadores. Certas manifestações já não são permitidas, como tirar a camisa, cobrir a cabeça ou subir para comemorar com a rapaziada na arquibancada. Neymar não leu a última atualização do manual da Fifa e teve que engolir um cartão amarelo ao comemorar o segundo gol do Brasil no amistoso de hoje de manhã. Phillipe Coutinho, mais comportado, celebrou o terceiro gol da seleção brasileira com um abraço fraterno nos companheiros e um sinal da cruz. Placar final: 3×0.

Mas não são só as torcidas que se divertem interpretando gestos de grandes craques. E nem só de palavras vivem os intérpretes. Os gestos e a expressão corporal são elementos importantíssimos para o entendimento de um discurso. Intérpretes fazem leitura labial. Leem nas entrelinhas. Ver o orador em ação nos permite dar o tom correto de uma frase, entender se se trata de uma simples observação ou de uma exclamação; uma pergunta retórica ou indagação de fato; uma ironia. Há gestos, inclusive, que substituem uma frase inteira. Ao vê-los, o intérprete pode não reproduzi-los para o público, mas encontrará a frase certa para explicá-los.

Outro dia, interpretando um curso prático de ortodontia, o médico usava os braços e as mãos o tempo todo para indicar os movimentos que deveriam ser feitos para corrigir a posição do dente. Dizia: “Vocês entram por aqui, inclinam o dente assim, depois giram para lá.” Para lá onde? Para a direita? Para a esquerda? Inclinar como? Entrar de que maneira? Todas essas informações foram transmitidas com gestos e não com palavras.

Quando estiver em um evento com tradução simultânea, preste atenção: Muitos intérpretes são tão efusivos em seu gestual quanto os oradores que traduzem. Inclusive, incorporar quem se interpreta, ou seja, concentrar-se e procurar se colocar no lugar do palestrante, é um recurso usado por esses profissionais para absorver e transmitir com maior riqueza de detalhes as nuances da fala.

Não raro, por questões de espaço, as cabines de tradução simultânea são instaladas em locais em que o intérprete não tem a visão direta do palco, às vezes até fora da sala, casos em que muitas vezes se instala um monitor dentro da cabine, para que os intérpretes de conferência possam ver seus oradores. Cada vez é mais comum interpretar de forma remota, frequentemente sem visão alguma de quem fala.

A tradução simultânea e o futebol não são tão diferentes. A gente treina, sofre, se emociona, sua a camisa, mas se diverte!

09 Jul / 2020

Craques da tradução simultânea: A interpretação na Copa do Mundo

No dia 14 de junho, a bola vai rolar em Moscou, na partida que abre a Copa do Mundo de 2018: Rússia x Arábia Saudita. Nesse momento, um time de craques tão habilidosos quanto discretos vai entrar em campo – um campo bem mais apertado, formado por 4 paredes à prova de som, sem gramado ou traves. São os intérpretes de conferência, responsáveis pela tradução das coletivas de imprensa e demais encontros oficiais do torneio.

O trabalho de tradução simultânea no mundial tem mais semelhanças com o universo do futebol do que você imagina – e é velho conhecido dos atletas, já acostumados à presença de intérpretes no cenário globalizado do esporte atual. “O grande interesse pelo futebol por parte da mídia, bem como a existência de atletas ‘imigrantes’ em clubes de elite, tem levado a um número crescente de entrevistas coletivas com jogadores e técnicos que não dominam o idioma do país onde trabalham”, escreve Annalisa Sandrelli, professora de Interpretação de Conferências da Universidade de Estudos Internacionais de Roma, num artigo acadêmico sobre o assunto. “Isso cria um nicho de mercado para tradutores profissionais nessa área”. Durante a Copa do Mundo, esse nicho atinge o ápice: é o momento com maior concentração de tradutores falando sobre futebol.

A seguir, você descobre um pouco mais sobre esse “esporte” fascinante chamado interpretação – e sua aplicação durante o mundial.

O Treino: Assim como os integrantes das esquadras nacionais, os intérpretes responsáveis pela tradução simultânea oficial da Copa do Mundo começam a se preparar muito antes do apito inicial. Em primeiro lugar, é preciso escolher os profissionais que vão trabalhar na Copa (leia “A Escalação”, a seguir). Montada a equipe, o Serviço de Idiomas da FIFA – órgão permanente que funciona na sede da organização, em Zurique, na Suíça – distribui para os intérpretes uma série de textos, documentos e glossários: é a fase de estudos. Os tradutores leem o material, aprendem em profundidade a terminologia específica do futebol e da Copa, assistem a vídeos de edições anteriores da competição e vão se familiarizando com as seleções participantes. Também para os intérpretes, há, digamos, “amistosos” que preparam a equipe para o evento propriamente dito: “o sorteio dos grupos, o workshop dos times, realizado em fevereiro de 2018 em Sochi, e sobretudo a Copa das Confederações são uma espécie de ensaio geral do esquema de tradução simultânea que será usado na competição”, conta Estelle Valensuela, gerente da Unidade de Intérpretes da FIFA, em entrevista exclusiva para o blog Outras Palavras, da VOX. “Essas ocasiões são ótimas oportunidades para adquirir mais experiência, trabalhar em parceria com o comitê organizador local da Rússia e saber o que esperar quando a Copa começar para valer”, continua ela.

A Escalação: Alisson. Ederson. Cássio. Danilo. Fagner. Marcelo. Filipe Luís. Miranda. Marquinhos. Thiago Silva. Geromel. Casemiro. Fernandinho. Paulinho. Renato Augusto. Fred. Philippe Coutinho. Willian. Neymar. Douglas Costa. Gabriel Jesus. Roberto Firmino. Taison.

A lista aí em cima, escolhida pelo técnico Tite, você já conhece. Ela foi motivo de muita expectativa antes de ser anunciada – e também de apostas: quem sai do time para a entrada de Neymar, recuperado do dedinho quebrado e autor de um golaço no amisto contra a Croácia: Fernandinho ou Willian? A escalação da equipe de intérpretes para a Copa do Mundo é igualmente importante e delicada, mas leva em conta critérios diferentes. “Selecionamos profissionais experientes, que tenham um diploma de Interpretação de Conferências, sejam interessados por futebol e esportes e tenham também amplos conhecimentos gerais”, explica Estelle. Isso porque, durante uma entrevista pós-jogo, atletas e treinadores podem discorrer sobre impedimentos, lesões na coxa direita, pênaltis duvidosos – ou sobre trechos da Bíblia que costumam ler antes das partidas, acontecimentos políticos em seu país de origem, um filme que viram no cinema e acharam inspirador… Os tradutores têm de estar preparados para tudo: precisam ser, a um só tempo, especialistas e generalistas. “Flexibilidade, mente aberta, compromisso e respeito são fundamentais para um profissional de tradução simultânea”, completa a linguista da FIFA. Tanto na Copa do Mundo quanto fora dela, acrescentamos nós aqui da VOX.

Para montar essa seleção campeã da tradução simultânea, os intérpretes começam a ser contratados meses antes da competição. Embora haja muitos tradutores no mundo, as possibilidades vão se afunilando quando consideradas todas as características acima – mais a necessidade de atender às combinações de idiomas exigidas a cada ocasião, a depender dos países envolvidos (leia abaixo em “O Esquema Tático”). “Os bons intérpretes costumam ser extremamente ocupados e requisitados. Por isso, é preciso reservá-los com antecedência, para garantir que estejam disponíveis durante todo o período da Copa”, continua Estelle.

O Esquema Tático: 4-4-2? 4-1-4-1? 4-2-3-1?

Não, o esquema tático que envolve os intérpretes é um pouco diferente da distribuição dos jogadores num gramado verdinho. É preciso levar em consideração, acima de tudo, os idiomas de trabalho de cada um. A FIFA tem quatro línguas oficiais: inglês, alemão, francês e espanhol. Além disso, a Copa do Mundo reúne seleções cujas línguas vão do nosso português ao árabe, passando pelo dinamarquês, coreano, polonês, japonês e por aí vai.

Num exemplo prático: na fase de grupos, o Brasil vai enfrentar a Sérvia (27 de junho, às 15h de Brasília, para quem não quiser perder). Depois do jogo, como sempre, as duas equipes concedem coletivas à imprensa. Essas conversas costumam ser traduzidas para os quatro idiomas oficiais da FIFA – que, somados ao português e ao sérvio, já representam seis línguas. Mais o russo, falado no país-sede, e temos sete idiomas em jogo. Para temperar bem essa salada linguística, usa-se um recurso chamado de relay ou relê no jargão da tradução simultânea: o jogador sérvio fala na sua língua materna (língua 1); um intérprete traduz do sérvio para o inglês (língua 2); na cabine ao lado, outro intérprete escuta essa versão em inglês (língua 2) e traduz para o português (língua 3). É uma espécie de corrida de revezamento – daí o nome relay –, na qual o conteúdo é passado de um idioma para outro, do jogador para um intérprete e depois para outro, como se fosse um bastão. Pode parecer confuso, mas funciona.

A Comissão Técnica: Os intérpretes também têm seus equivalentes ao treinador Tite, ao preparador físico Ricardo Rosa ou ao auxiliar técnico Matheus Bacchi. Trata-se da equipe de coordenação, da qual Estelle Valensuela faz parte. A principal função desse pequeno grupo de intérpretes não é a tradução propriamente dita, mas sim comandar o time de linguistas: estabelecer as duplas que vão trabalhar a cada evento e em cada combinação de idiomas; distribuir glossários, textos informativos, horários e locais de trabalho; verificar se as condições técnicas são adequadas para o bom desempenho dos intérpretes (tamanho das cabines, equipamento utilizado, qualidade do som, etc.). Na Rússia, isso significa reger uma orquestra de quase 50 linguistas, trabalhando em 16 idiomas.

Assim como ocorreu na África do Sul (2010) e no Brasil (2014), a tradução simultânea das coletivas e eventos na Rússia não será feita in loco, e sim a partir de um Centro de Interpretação Remota (RIC, na sigla em inglês). Em cada uma dessas Copas os centros ficavam, respectivamente, em Johanesburgo, Rio de Janeiro e agora em Moscou. As coletivas são transmitidas via satélite para o RIC, onde os intérpretes trabalham dentro das tradicionais cabines à prova de som, diante de monitores de TV que mostram imagens da pessoa que está falando e precisa ser traduzida. “É fundamental que o profissional veja quem está traduzindo, para acompanhar gestos, expressões e movimentos labiais”, diz Estelle. O áudio da tradução é então transmitido de volta para a cidade onde a coletiva está ocorrendo, de modo que os jornalistas presentes possam acompanhar, e também para canais de TV que estejam transmitindo a entrevista.

O sistema de interpretação remota tem vantagens e desvantagens, conforme explica Andrey Moiseev, diretor do Departamento de Idiomas do Comitê Organizador Local russo: “pode haver um atraso de alguns segundos no áudio da tradução, mas esse problema é compensado pela praticidade de contar com todos os intérpretes no mesmo local”. Ou seja: em vez de ter tradutores viajando por um país de dimensões continentais como a Rússia (o que traria desafios logísticos), a interpretação via satélite permite que uma mesma dupla de intérpretes traduza até três coletivas num único dia. Em mais uma metáfora futebolística, isso significa contar com os jogadores em campo por mais tempo.

Pronto: agora você já pode pegar a vuvuzela, cruzar os dedos e torcer pelo hexa, na certeza de que todo mundo vai se entender, dentro e fora de campo.

09 Jul / 2020

Inculta e – acima de tudo – bela

Na condição de intérpretes e tradutores, nós (a turma da VOX) gostamos muito de estudar e conhecer todos os meandros das línguas estrangeiras. Mas o primeiro amor de qualquer pessoa apaixonada por idiomas é o nosso português. Não importa o que se diga sobre ele – o subjuntivo dos verbos “ver” e “vir” é um inferno, a norma culta é cheia de regras e exceções ilógicas, a grafia de “obsessão” e “obsceno” e “exceção” é uma eterna pegadinha… O fato é que falamos uma língua linda e mundialmente conhecida como musical.

Esse profundo interesse pelo português nos leva a recomendar a série de reportagens especiais “O Tamanho da Língua”, publicada recentemente pela Folha de São Paulo. Em diversas matérias, o jornal conta a história do surgimento do nosso idioma – resultado, entre outras coisas, do domínio do Império Romano na região da Península Ibérica –, mostra os diferentes “portugueses” falados no Brasil, em Portugal e nos países africanos, revela a influência dos índios no inconfundível sotaque paulista do “interiorrrrr” e muitas outras curiosidades fascinantes.

Confira os textos aqui (infelizmente, restritos a assinantes da Folha de São Paulo ou do UOL): O Tamanho da Língua (folha.com.br)