09 Jul / 2020

O melhor filme (não) indicado ao Oscar – pelo menos para os intérpretes

Há 20 anos o jovem húngaro Barnabás Tóth teve uma única experiência de trabalho como intérprete de conferências. “Foi um pesadelo”, lembra ele, em entrevista exclusiva concedida por e-mail ao blog Outras Palavras, da VOX. “Felizmente, apenas um senhor ouviu minha tradução para o francês. No final do dia, eu me desculpei pelo péssimo trabalho que havia feito”. O episódio traumático ficou na memória de Tóth, que acabou abandonando a tradução simultânea para ser cineasta. No ano passado ele lançou Chuchotage, curta-metragem que mostra um dia de trabalho na rotina de dois intérpretes de húngaro (esses sim, profissionais experientes) e de sua única ouvinte na plateia.

O filme foi “candidato a candidato” ao Oscar 2019, mas não passou pela peneira final (e por isso não está entre os finalistas que disputarão a estatueta na cerimônia do domingo, 24 de fevereiro). Fora da premiação, infelizmente diminuem as chances de que o título seja exibido em festivais pelo mundo e chegue ao Brasil. Para intérpretes e cinéfilos em geral interessados em conferir Chuchotage, porém, Tóth avisa: “ponho todos os meus filmes no meu site, barnabastoth.com, depois que eles encerram sua vida comercial em salas e mostras de cinema”. Chuchotage, portanto, deve estar disponível na internet dentro de mais ou menos um ano.

A VOX assistiu ao filme, cujo título usa o termo francês que descreve a modalidade conhecida no Brasil como “sussurrada” – situação em que apenas uma pessoa precisa do intérprete, e este faz a tradução simultânea em voz baixa, ao pé do ouvido do cliente. Embora Chuchotage não mostre esse tipo de tradução, e sim a tradicional simultânea feita numa cabine, com fones de ouvido para a plateia, a ideia do sussurro indica a situação que se desenrola na breve trama: dois intérpretes homens têm um canal direto para se comunicar, pelos fones de ouvido, com uma única e bela ouvinte. A partir dessa ideia se desenrolam os 16 minutos de filme.

À exceção da conexão entre os tradutores e a moça (na qual ambos deixam a isenção e a neutralidade de lado – algo impensável para um profissional – e tentam conquistá-la apenas com a voz), Chuchotage mostra com realismo um dia típico para uma dupla de intérpretes: o colega (conhecido no jargão da profissão como “concabino”) que leva um sanduíche de cheiro forte para a cabine, empesteando o espaço exíguo; os temas inusitados traduzidos nas conferências (no filme, o assunto da palestra traduzida para húngaro é “mecanismos ambientais e efeitos dos condensadores à base de amônia”); a habilidade dos intérpretes de escutar uma língua, traduzir para outra e ainda fazer uma terceira atividade ao mesmo tempo (os dois personagens disputam uma versão húngara do jogo da velha); a salada de idiomas de uma conferência internacional, com tradutores de várias línguas falando todas ao mesmo tempo; ou a necessidade que os intérpretes têm de procurar seus ouvintes na plateia, para que sirvam como bússola do trabalho que está sendo feito (rir de uma piada bem traduzida ou concordar com alguma afirmação do palestrante, fazendo um aceno de cabeça, são sinais de que a tradução vai bem e todos estão acompanhando).

Na entrevista a seguir, Tóth fala sobre a ideia por trás do filme, a pesquisa que realizou para mostrar o trabalho dos intérpretes, os desafios impostos pela profissão e até sobre as particulares do idioma húngaro.

VOX: Como surgiu a ideia de Chuchotage?

Barnabás Tóth: Trabalhei como intérprete uma única vez na vida, por um dia. Foi um pesadelo. Felizmente apenas um senhor, de Luxemburgo, estava ouvindo minha tradução para o francês. No final da conferência, eu me desculpei pelo péssimo trabalho que havia feito. Isso foi há vinte anos. Em 2017, vi uma notícia sobre um concurso para roteiros de curta-metragem, e me lembrei do episódio. Inscrevi meu script, ganhei uma pequena verba de produção e rodei o filme com a produtora húngara Laokoon Filmgroup.

VOX: A representação de um dia na rotina dos intérpretes na cabine é bastante fiel à realidade. Como você se informou sobre os detalhes da profissão, como foi a pesquisa?

Tóth: Primeiro escrevi uma versão inicial do roteiro, centrada na trama, nos personagens e em suas emoções. Aí comecei a pesquisa: conversei com muitos intérpretes (húngaros e alemães) e passei horas dentro de uma cabine, numa situação real de tradução simultânea. Observei tudo atentamente, e os profissionais me contaram sobre seu cotidiano, as coisas de que gostam e não gostam no trabalho e nos colegas, casos ocorridos de verdade – como a história citada no filme, da intérprete que preparou uma sopa instantânea dentro da cabine – e falaram sobre as dificuldades da chuchotage – a interpretação sussurrada.

VOX: Na condição de cineasta, o que chama sua atenção nessa profissão a ponto de considerá-la bom material dramático para um filme?

Tóth: É uma grande responsabilidade e um trabalho mental extremamente difícil, que exige muita prática. Apesar disso, a plateia não sabe quase nada sobre os intérpretes. Na maior parte do tempo, não os vemos, mesmo que passemos um dia inteiro ouvindo sua voz. Mas os intérpretes não são heróis: são pessoas comuns, com os mesmos sentimentos, desejos e medos que todos nós.

VOX: O set de filmagem também é bastante real, semelhante a muitas salas de conferência que existem por aí. O cenário foi construído especialmente para o filme ou vocês filmaram numa locação existente?

Tóth: Demos sorte. Filmamos em novembro de 2017 numa sala de conferências de verdade, demolida logo depois. O espaço havia sido uma sala de reuniões para líderes comunistas de Budapeste, nos anos 60 e 70. Tudo o que se vê no filme é real, mas o local estava desativado quando rodamos. Gosto das cores da sala, das paredes de madeira, do fato de que as cabines ficam no fundo, como costuma ser, e são relativamente escuras. Tudo isso se encaixou bem na trama e no clima do curta.

VOX: Fale um pouco sobre sua experiência como intérprete, e por que você decidiu seguir outra carreira.

Tóth: No mesmo ano em que entrei para a Academia de Cinema de Budapeste, fui aceito no curso de formação de intérpretes para a União Europeia. Meu pai é professor de línguas, e aprendi inglês e francês na infância. Ele era muito severo, e dominar dois idiomas estrangeiros era obrigatório na minha casa. Meu pai queria que eu estudasse administração de empresas e tivesse uma carreira internacional, mas logo percebi que minha paixão era o cinema.

VOX: Por que você decidiu usar a palavra chuchotage como título do filme, considerando que essa não é a modalidade mostrada na tela? Será pela sugestão de que o sussurro estabelece um contato mais próximo entre quem fala e quem escuta?

Tóth: Gosto do som francês da palavra, que é usada em muitos idiomas – embora pouca gente conheça seu significado. É uma palavra romântica, divertida, que sugere intimidade.

VOX: Vários ditados fazem referência à dificuldade de se aprender húngaro, sua língua materna (“é o único idioma que o diabo respeita”, diz um deles). Além disso, há quem diga que uma língua representa características de seus falantes: a lógica cartesiana do alemão, o som sedutor do francês, a musicalidade do português… Quais são as particularidades do húngaro, essa língua tão distante de outras famílias, e como ele representa seu povo?

Tóth: Poxa, que pergunta difícil e complexa. Não sei se eu acharia o húngaro bonito se não fosse minha língua nativa. Os sérvios dizem que o húngaro parece um cachorro latindo de trás pra frente. Nossa gramática permite acrescentar mais e mais pedaços às palavras, e elas ficam enormes. Por exemplo: para dizer “você é uma pessoa incorruptível”, usamos o termo “megvesztegethetetlenségetekért”. Imagine o resto do idioma…