24 Mai / 2021

A tradução do horror

O atrativo inicial para assistir a Quo Vadis, Aida?, candidato derrotado da Bósnia e Herzegovina ao Oscar de melhor filme estrangeiro deste ano, era o fato de a protagonista ser uma intérprete. A atriz Jasna Djuricic é a Aida do título, uma professora que se torna intérprete das tropas da ONU durante a Guerra da Bósnia (1992 – 1995). O crachá de funcionária das Nações Unidas confere a Aida alguns privilégios em meio ao caos do conflito: proteção física, contato direto com generais, acesso a comida e banheiro – um luxo num momento em que o cenário é de destruição. Mas seu trabalho também a coloca diante de horrores indizíveis, com a função justamente de… falar sobre eles. Cabe a ela interpretar as mensagens (quase sempre desesperançadas) dos capacetes azuis aos refugiados, e vice-versa; ajudar paramédicos a atender feridos em situação crítica; transmitir comunicados que ela pressente serem equivocados, mentirosos e até capazes de levar milhares de civis à morte.

O filme, porém, vai muito além da atuação de uma intérprete num contexto de guerra. A produção, dirigida por Jasmila Zbanic, retrata com grande força e sensibilidade as diferentes dimensões devastadoras do conflito – sobretudo de um episódio específico: o massacre de Srebrenica. Na ocasião, mais de oito mil muçulmanos foram assassinados pelas forças do comandante sérvio Ratko Mladić, posteriormente condenado à prisão perpétua por crimes contra a humanidade. Sobre esse pano de fundo histórico Quo Vadis, Aida? costura o drama pessoal da personagem principal, que tenta desesperadamente salvar a própria família.

Assistir ao filme com o olhar de profissional da interpretação faz refletir sobre diversos aspectos: a exaustão de trabalhar em condições aterradoras; a dificuldade de se manter neutra quando os refugiados que Aida precisa traduzir são seus ex-alunos, conhecidos, vizinhos, filhos; o cuidado na escolha das palavras ao interpretar negociações de alta tensão, que podem determinar a sobrevivência (ou a aniquilação) de grupos inteiros de pessoas; a delicada tarefa de transmitir mensagens das quais se discorda, ou que são flagrantemente enganosas. A despeito do interesse específico para quem trabalha na área, o longa-metragem bósnio é um programa que vale a pena para qualquer pessoa que goste de história, de narrativas humanas contundentes e de cinema bem-feito. A diretora entrelaça todos esses aspectos com habilidade e mão firme, sem jamais escorregar para a pieguice.

Audrey Hepburn em "Charada"

Em tempo: Quo Vadis, Aida? é mais um título na “linhagem” de filmes que têm intérpretes entre os personagens principais. Quase sempre o profissional de tradução é colocado na condição simultânea de testemunha da história e sujeito afetado pessoalmente pelo desenrolar dos acontecimentos. Quem quiser maratonar pode assistir também O Tradutor, com Rodrigo Santoro no papel de um cubano que se torna intérprete de russo para ajudar crianças vítimas do desastre nuclear de Chernobyl; o curta-metragem Chuchotage, também indicado ao Oscar, brincadeira leve e divertida com um episódio ficcional ocorrido no escurinho da cabine; o clássico Charada, com ninguém menos do que Audrey Hepburn no papel de uma intérprete; Amistad, em que um intérprete é convocado para traduzir na Suprema Corte americana o julgamento de um grupo de escravos africanos amotinados; e o mais famoso de todos, A Intérprete, com Nicole Kidman no papel de uma funcionária da ONU que se envolve numa trama da espionagem.

Nicole Kidman em "A Intérprete"

(Quo Vadis, Aida? está disponível no iTunes e no Google Play. No Oscar deste ano, ele perdeu para o ótimo dinamarquês Druk – Mais Uma Rodada, que também vale o preço do streaming.)

Texto de Beatriz Velloso