11 Mai / 2021

Uma pandemia de novas palavras

Os alemães criaram centenas de termos para descrever os efeitos sanitários, sociais e econômicos do coronavírus. Essa chacoalhada no dicionário mostra que a importância de um acontecimento na sociedade pode ser medida, também, pelas mudanças que ele causa no nosso jeito de falar.

Outro dia escrevi sobre as novas palavras incorporadas oficialmente ao português (uberização, gordofobia, lockdown). Agora a Folha de S. Paulo informa que os alemães, com sua “língua-Lego” que permite juntar pecinhas e formar uma infinidade de novos vocábulos, criaram cerca de mil termos associados à pandemia. Compilada pelo Instituto Leibniz para Língua Alemã, a lista é longa e reúne expressões citadas na imprensa do país desde o início do ano passado – algumas delas cunhadas pela própria chanceler Angela Merkel.

Os neologismos alemães formam a sopa de letrinhas que se espera do idioma de Goethe, um fascinante amálgama de várias palavras que se fundem para formar outra, até então inexistente: Coronamutationsgebiet é uma “região de mutação do vírus”; Impftourismus se refere ao “turismo de vacina” entre diferentes estados, em busca de locais onde a imunização avança mais rápido; Klopapierhysterie é a “histeria do papel higiênico” que acometeu muita gente no início da quarentena; Kontaktnachverfolgungsapp define um “aplicativo de rastreamento de contatos”; Lockdownverweigerer são os “negacionistas do lockdown”… E assim por diante.

É interessante notar que o impacto de determinado acontecimento na sociedade pode ser medido, entre outras coisas, pela chacoalhada que ele causa na língua. As invenções alemãs são um retrato bem-acabado da relação simbiótica entre o desenrolar da história e o nosso jeito de falar. Por aqui, os brasileiros sempre foram pródigos em criar neologismos ou estabelecer novas acepções para expressões antigas, que ganham carga e significado renovados ao descrever o cenário político do país. Alguns exemplos da nossa criatividade semântica, desde o momento mais recente e rebobinando para as administrações anteriores: bozo, bolsominion, gripezinha, e daí?, pequi roído, posto ipiranga, 01, 02, 03, ele não, petralha, picolé de chuchu, mensalão, tchau querida, pixuleco, japonês da federal, coxinha, mortadela, engavetador geral da república, anões do orçamento, acabar em pizza, etc, etc, etc, etc. Só um brasileiro é capaz de compreender todas as nuances contidas nesses termos, que brotam de forma espontânea, no calor do momento.

É claro que, com o passar do tempo – e com o consequente desaparecimento desses assuntos do noticiário –, muitos dos novos vocábulos morrem na mesma velocidade com que nasceram. Mas, enquanto estão ativos e presentes na boca do povo, eles são vistos por intérpretes de conferência com um misto de interesse profissional e cautela. Sempre que aparecem no discurso de uma pessoa que estamos traduzindo, essas expressões fazem soar uma sirene interna: “atenção, risco de levar uma rasteira”. No calor da tradução simultânea, com apenas alguns segundos para produzir uma solução correta e que faça sentido para um estrangeiro, como explicar todo o significado contido em rachadinha? Ou, na mão inversa, como esclarecer para um brasileiro, num piscar de olhos, que uma Öffnungsdiskussionsorgie (o neologismo cunhado por Angela Merkel) é um excesso – ou orgia – de discussões sobre a reabertura após um período de lockdown?

É o tipo de situação em que o intérprete provavelmente vai se render à conclusão de que alguma perda é inevitável: por mais que se arrume uma solução no outro idioma, ela não será capaz de transmitir todo o contexto que vem a reboque da expressão original. Nesses casos, o melhor a fazer é buscar uma explicação curta e simples, que transmita o cerne da ideia, para não deixar na mão o ouvinte que depende da tradução simultânea (no caso da rachadinha, o intérprete pode, por exemplo, dizer algo como “suspeitas de corrupção”). Quem trabalha com idiomas sabe que o nosso cotidiano tem dessas: em algumas situações, é preciso aceitar que nenhuma opção feita pelo tradutor surtirá no público internacional o mesmo efeito causado sobre um brasileiro (que dispõe de uma série de informações sobre o cenário à qual se refere o neologismo). Essas pequenas frustrações, porém, são compensadas pelo prazer de compreender e enxergar beleza até mesmo em palavrões como Coronahoffnungsträger – algo como “portadores de esperança do corona”, outra novidade do alemão, criada para definir medicamentos ou pessoas que trazem boas notícias na luta contra a COVID-19.

Texto de Beatriz Velloso.