07 Jun / 2021

Parecidos – pero no mucho

Toda vez que ouço alguém dizer que os brasileiros sabem se virar em espanhol; que nossos vizinhos hispanohablantes sempre dão um jeito de compreender o que dizemos por aqui; que a tradução simultânea espanhol <> português pode ser dispensada porque, de um jeito ou de outro, o pessoal acaba se entendendo… penso nas inúmeras ciladas contidas na comunicação entre falantes desses dois idiomas, aparentemente tão próximos e inofensivos.

Penso que quem “late” em castelhano não é o cachorro, é o coração; que “orilla” não é orelha, e sim margem; e “pelo” não é pelo, é cabelo. Penso que “oso” não é osso, e sim urso; e “polvo” não é polvo, e sim pó. “Raro” é esquisito, e não raro; e “exquisito” não é esquisito, mas sim delicioso – veja só que deliciosa esquisitice idiomática. Quando a comida está gostosa, a gente diz que está “rica”; e se a salada está salgada, a gente diz que está “salada”. Se você quer que alguém aceite a salada, não diga aceite, porque “aceite” é azeite. E se um espanhol perguntar se a salada contém “berro”, não solte um berro, pois “berro” é agrião. “Apellido” não é apelido, e sim sobrenome; e “sobrenombre” não é sobrenome, e sim apelido. “Sótano” não é sótão (é porão); “zurdo” não é surdo (é canhoto); e “pelado” não é pelado, (é careca). “Cura” não é cura, é padre; e “padre” não é padre, é pai. A brincadeira dos falsos cognatos não tem fim.

As enganosas semelhanças entre palavras são apenas a pontinha do iceberg que separa essas duas línguas aparentadas. As diferenças incluem uma porção de gêneros de substantivos (“la nariz”, “el análisis”, “una sonrisa” e tantos outros), a inexistência de algumas formas verbais do português no castelhano (o infinitivo pessoal), a tinhosa pegadinha dos “mil millones” (bilhões) e “billones” (trilhões), etc, etc, etc.

Vale lembrar também que não existe um único espanhol. As variações entre a língua falada no Peru, na Bolívia, no Paraguai e na Espanha não são desprezíveis, e aumentam o grau de dificuldade desse jogo de entendimento. Só no setor de frutas as arapucas aparecem às pencas: “frutilla” (morango), na Argentina e no Chile, é “fresa” na Espanha; o “aguacate” (abacate) da Venezuela vira “palta” no Uruguai; e uma simples banana pode ser “platano” no Chile, “cambur” na Venezuela e “banano” (isso mesmo, com “o”) na Colômbia. Ah, e como bem lembrou a Camila Bogéa – uma intérprete de mão cheia, que domina todas essas mumunhas: ônibus é “autobus” na Espanha, “guagua” em Cuba e “camión” no México (pois é, os mexicanos chamam ônibus de “camión”. Vai entender). Isso fora o nosso micro-ônibus do português, que os colombianos chamam de… Bom, essa é melhor nem contar.

Ou seja: a quantidade de situações e contextos que convidam um falante de português ao equívoco na hora de se expressar em espanhol, e vice-versa, é imensa. Naturalmente, não há problema algum em se atrapalhar numa temporada de férias em Buenos Aires, na hora de pedir um ojo de bife e uma taça de malbec num restaurante. Quem nunca recorreu e foi salvo pelo bom e velho portunhol? Mas cometer erros numa reunião de trabalho, numa apresentação profissional ou num congresso diante de uma plateia de especialistas… Aí são outros quinhentos. Nesses momentos, a presença do intérprete é fundamental.

Resumo da ópera: não se deve dar de barato que os brasileiros entendem o espanhol e os hispanohablantes, o português. E esse, no fundo, é o grande barato da diversidade de idiomas – mesmo quando eles são parecidos, pero no mucho.

Texto de Beatriz Velloso.