31 Mai / 2021

Tão longe, tão perto: os desafios da tradução simultânea remota

Um palestrante na Ásia, outro nos Estados Unidos, um ministro do Supremo Tribunal Federal em Brasília e mais dois participantes falando de São Paulo. Uma plateia com gente assistindo em Curitiba, Porto Alegre, Salvador e outras cidades brasileiras. Cada um na própria casa, todos conectados à internet, podendo falar e ouvir as apresentações na língua de sua escolha – graças à presença virtual de uma dupla de intérpretes. Este exemplo real representa o novo cotidiano de centenas de intérpretes de todo o mundo, que tiveram de se adaptar, da noite para o dia (como tantas outras profissões) à realidade do home office e das videoconferências.

Já escrevi aqui sobre os desafios enfrentados por intérpretes e tradutores naquela vida que chamávamos de “normal”. Falei sobre as armadilhas de interpretar celebridades famosas; sobre as arapucas da tradução de textos jornalísticos; sobre a falsa simplicidade da combinação espanhol <> português – que leva muitos desavisados a acreditarem na premissa equivocada de que nativos dos dois idiomas se entendem perfeitamente.

Nos últimos dias, li também uma porção de textos escritos por profissionais de outras áreas – advogados, engenheiros, economistas e, é claro, especialistas em saúde – sobre as dificuldades impostas pela situação inaudita que atravessamos hoje. Para intérpretes de conferência como eu, o distanciamento social também causou uma reviravolta. A tradução simultânea remota tornou-se incontornável, tivemos de pegar esse touro à unha – e, para isso, lançamos mão de muito jogo de cintura, bagagem profissional e conhecimentos técnicos (requisitos que já eram importantes antes, mas agora se tornaram imprescindíveis).

Percebi alguns desafios comuns no evento citado no início deste texto, em outras experiências que tive nas últimas semanas e em episódios relatados por colegas intérpretes. Algumas dessas questões se aplicam a qualquer pessoa que participa de videoconferências ao vivo, na condição de panelista ou de plateia – e não apenas a quem faz a tradução simultânea. Divido a seguir um ou outro tema que me ocorreu, não necessariamente em ordem de importância. A lista não é exaustiva, e novos itens e outras histórias serão bem-vindos.

1) Variação na qualidade da conexão de internet dos participantes: tem gente que entra na conferência com uma super banda larga por fibra ótica, que voa na velocidade da luz. Outros usam um celular com um wi-fi que oscila ao sabor do vento. Sendo assim, é comum a imagem congelar, o áudio falhar ou haver um delay entre vídeo e áudio de quem está falando (a boca faz um movimento, mas a voz já está lá na frente). Para o intérprete, esse delay é um aviso: hora de fechar os olhos, concentrar todos os esforços nos ouvidos, abandonar a visão e confiar na audição. Poucas coisas são mais desconcertantes para um intérprete do que falta de sincronia entre imagem e som. Quando isso ocorre, o vídeo do palestrante mais atrapalha do que ajuda. A afirmação certamente vale, embora com menor grau de incômodo, para a plateia virtual. Por isso, sempre, sempre, sempre que possível (este ponto é realmente importante), quem for participar do encontro como palestrante deve recorrer a uma conexão de internet cabeada, que garante mais qualidade na transmissão e evita – em bom português – o perrengue de sair do ar no meio da apresentação. No caso dos intérpretes, também é fundamental contar com fone e microfone profissionais, próprios para esse tipo de transmissão.

2) A profusão de plataformas de videoconferência: Meet, Teams, Webex, Zoom, BlueJeans… As opções são muitas, cada uma com recursos diferentes e particularidades específicas. Quando o ingrediente tradução simultânea é acrescentado à receita, as variáveis aumentam ainda mais. Com o avanço da pandemia e por força da circunstância, os intérpretes aprenderam uma porção de truques para fazer a tradução simultânea remota funcionar a contento – incluindo sessões de perguntas e respostas, a participação de um moderador e outras manhas. Tivemos de nos tornar, na marra e em tempo recorde, especialistas em TI. (É por essas e outras que adoro a minha profissão: ela obriga a gente a estar sempre aprendendo, mesmo – ou talvez sobretudo – em cenários complexos como o atual. Um conhecimento que sem dúvida será útil também quando a poeira baixar e a vida começar a voltar ao normal.)

3) Os percalços inevitáveis de encontros virtuais com cada um na sua casa: o cachorro late, o filho entra na sala gritando, a obra martela no apartamento de cima, um parceiro lava a louça na cozinha, o panelaço começa nas janelas do bairro, a vizinha toca piano (lindas sonatas, no meu caso, que adoro ouvir e só me atrapalham quando sento para traduzir na frente do computador). Com a derrubada das fronteiras que separavam o escritório do ambiente doméstico, estamos todos sujeitos aos ruídos do cotidiano. Para os intérpretes, esses sons representam um obstáculo adicional: se o palestrante está ministrando uma aula e os demais participantes mantêm o microfone aberto, todos esses barulhos vão concorrer com o áudio que o tradutor precisa ouvir perfeitamente, para então vertê-lo ao outro idioma. Talvez o hábito de desligar o microfone quando não estamos falando seja a regra número um de etiqueta nesse período de trabalho remoto.

4) A profissão fora da cabine e a distância entre a dupla de intérpretes que traduz o evento: quem faz tradução simultânea está acostumado a ficar bem perto do colega (ou do “concabino”, no jargão da interpretação). A cabine de tradução simultânea é tão exígua e cheia de botões que costuma ser comparada a um cockpit de avião. Agora, cada intérprete está no seu canto – e as anotações passadas num papelzinho, os post-its que a gente cola na frente do colega para ajudar com um termo cabeludo, a troca de olhares para sinalizar a hora de ceder o microfone ao outro… tudo isso se perdeu. Felizmente (como em tantos aspectos do atual momento), a tecnologia está aí para ajudar. Numa tela fica a videoconferência; noutra, o WhatsApp ou qualquer meio de enviar mensagens, dicas de vocabulário e glossários durante o evento. Pessoalmente, posso afirmar sem medo de errar que essa é a parte de que mais sinto falta: estar fisicamente presente na sala da conferências, vendo o palestrante em carne e osso, podendo cutucar o colega, trocar ideias e falar bobagem no intervalo do cafezinho. A cabine de tradução é, sem dúvida, um local de trabalho insalubre: toda forrada para garantir isolamento acústico, ela é apertada, abafada, cheia de ácaros e desconfortável. Mas eu adoro esse cafofo, e tenho saudade dele todos os dias.

Tudo bem. A tradução simultânea remota, para todos nós que atuamos na área, tem sido um desafio, um grande aprendizado – e também uma curtição.

Texto de Beatriz Velloso

24 Mai / 2021

A tradução do horror

O atrativo inicial para assistir a Quo Vadis, Aida?, candidato derrotado da Bósnia e Herzegovina ao Oscar de melhor filme estrangeiro deste ano, era o fato de a protagonista ser uma intérprete. A atriz Jasna Djuricic é a Aida do título, uma professora que se torna intérprete das tropas da ONU durante a Guerra da Bósnia (1992 – 1995). O crachá de funcionária das Nações Unidas confere a Aida alguns privilégios em meio ao caos do conflito: proteção física, contato direto com generais, acesso a comida e banheiro – um luxo num momento em que o cenário é de destruição. Mas seu trabalho também a coloca diante de horrores indizíveis, com a função justamente de… falar sobre eles. Cabe a ela interpretar as mensagens (quase sempre desesperançadas) dos capacetes azuis aos refugiados, e vice-versa; ajudar paramédicos a atender feridos em situação crítica; transmitir comunicados que ela pressente serem equivocados, mentirosos e até capazes de levar milhares de civis à morte.

O filme, porém, vai muito além da atuação de uma intérprete num contexto de guerra. A produção, dirigida por Jasmila Zbanic, retrata com grande força e sensibilidade as diferentes dimensões devastadoras do conflito – sobretudo de um episódio específico: o massacre de Srebrenica. Na ocasião, mais de oito mil muçulmanos foram assassinados pelas forças do comandante sérvio Ratko Mladić, posteriormente condenado à prisão perpétua por crimes contra a humanidade. Sobre esse pano de fundo histórico Quo Vadis, Aida? costura o drama pessoal da personagem principal, que tenta desesperadamente salvar a própria família.

Assistir ao filme com o olhar de profissional da interpretação faz refletir sobre diversos aspectos: a exaustão de trabalhar em condições aterradoras; a dificuldade de se manter neutra quando os refugiados que Aida precisa traduzir são seus ex-alunos, conhecidos, vizinhos, filhos; o cuidado na escolha das palavras ao interpretar negociações de alta tensão, que podem determinar a sobrevivência (ou a aniquilação) de grupos inteiros de pessoas; a delicada tarefa de transmitir mensagens das quais se discorda, ou que são flagrantemente enganosas. A despeito do interesse específico para quem trabalha na área, o longa-metragem bósnio é um programa que vale a pena para qualquer pessoa que goste de história, de narrativas humanas contundentes e de cinema bem-feito. A diretora entrelaça todos esses aspectos com habilidade e mão firme, sem jamais escorregar para a pieguice.

Audrey Hepburn em "Charada"

Em tempo: Quo Vadis, Aida? é mais um título na “linhagem” de filmes que têm intérpretes entre os personagens principais. Quase sempre o profissional de tradução é colocado na condição simultânea de testemunha da história e sujeito afetado pessoalmente pelo desenrolar dos acontecimentos. Quem quiser maratonar pode assistir também O Tradutor, com Rodrigo Santoro no papel de um cubano que se torna intérprete de russo para ajudar crianças vítimas do desastre nuclear de Chernobyl; o curta-metragem Chuchotage, também indicado ao Oscar, brincadeira leve e divertida com um episódio ficcional ocorrido no escurinho da cabine; o clássico Charada, com ninguém menos do que Audrey Hepburn no papel de uma intérprete; Amistad, em que um intérprete é convocado para traduzir na Suprema Corte americana o julgamento de um grupo de escravos africanos amotinados; e o mais famoso de todos, A Intérprete, com Nicole Kidman no papel de uma funcionária da ONU que se envolve numa trama da espionagem.

Nicole Kidman em "A Intérprete"

(Quo Vadis, Aida? está disponível no iTunes e no Google Play. No Oscar deste ano, ele perdeu para o ótimo dinamarquês Druk – Mais Uma Rodada, que também vale o preço do streaming.)

Texto de Beatriz Velloso

17 Mai / 2021

“Negacionismo”, “feminicídio”: novos vocábulos do nosso idioma

A Academia Brasileira de Letras divulgou recentemente uma lista de novas palavras (“gordofobia”, “afrofuturismo”, “uberização”) incorporadas oficialmente ao léxico do português brasileiro, conforme noticiou a revista Veja. A decisão da ABL tem importância mais simbólica do que prática. Ela indica que a vetusta entidade fundada em 1897 por Machado de Assis, onde os “imortais” se reúnem vestindo seus solenes fardões, finalmente abraçou um fato incontornável: a língua é um organismo vivo, mutante, uma esponja que absorve tudo ao redor (quem nunca ouviu alguém dizer: “o link está embedado no site”?). Lutar contra essa realidade “é a luta mais vã”, parafraseando o famoso verso de Carlos Drummond de Andrade. E, por mais que a Academia tenha lá suas regras e resistências, as pessoas vão falar o que e como bem entenderem – nas ruas, no Twitter, nas conversas por WhatsApp, no bate-papo sobre o Big Brother.

Há algum tempo a ABL já vinha publicando em seu site uma nova palavra por semana. A diferença, agora, é que os termos que integram a recém-divulgada lista serão formalmente adotados pelo Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, que serve como base para os dicionários. Embora não se publiquem mais dicionários físicos (na era digital, não faz sentido um catatau de 2922 páginas, como é o caso do Houaiss), as compilações de verbetes seguem sendo atualizadas – e o VOLP, como é conhecida a lista compilada pela Academia, é a principal referência.

Aurélio Buarque de Holanda, o homem cujo nome virou sinônimo de dicionário, foi um dos primeiros lexicógrafos brasileiros a colocar em prática essa compreensão. Nos longos anos de pesquisa e labuta para reunir os mais de 120 mil verbetes da primeira edição do “Novo dicionário da língua portuguesa” (era esse o nome original da obra lançada em 1975), ele fez questão de incluir gírias, palavrões, regionalismos, termos relacionados a sexo e estrangeirismos – coisa que muitos filólogos da época se recusavam a fazer, teimando em não “poluir” a língua, como se fossem as páginas estáticas que determinassem o uso que a gente faz do idioma, e não o inverso. Um exemplo singelo: entre os sinônimos de “libélula”, Aurélio colocou “lava-bunda” – um pequeno escândalo para a sociedade conservadora de então, em plenos anos de chumbo da ditadura militar.

A história da criação do famoso dicionário é narrada com leveza no simpático “Por trás das palavras”, do jornalista fluminense Cezar Motta, lançado no final do ano passado. Num trecho do livro, o autor cita uma entrevista dada por Aurélio, na qual ele dizia: “As palavras são ariscas. Quando você vê, a palavra tragou você”. Talvez a sacada mais inteligente do lendário dicionarista alagoano tenha sido se deixar engolir pela língua, conforme a ABL (na qual Aurélio ocupou a cadeira de número 30, hoje pertencente a Nélida Piñon) está finalmente fazendo agora.

Texto de Beatriz Velloso.

11 Mai / 2021

Uma pandemia de novas palavras

Os alemães criaram centenas de termos para descrever os efeitos sanitários, sociais e econômicos do coronavírus. Essa chacoalhada no dicionário mostra que a importância de um acontecimento na sociedade pode ser medida, também, pelas mudanças que ele causa no nosso jeito de falar.

Outro dia escrevi sobre as novas palavras incorporadas oficialmente ao português (uberização, gordofobia, lockdown). Agora a Folha de S. Paulo informa que os alemães, com sua “língua-Lego” que permite juntar pecinhas e formar uma infinidade de novos vocábulos, criaram cerca de mil termos associados à pandemia. Compilada pelo Instituto Leibniz para Língua Alemã, a lista é longa e reúne expressões citadas na imprensa do país desde o início do ano passado – algumas delas cunhadas pela própria chanceler Angela Merkel.

Os neologismos alemães formam a sopa de letrinhas que se espera do idioma de Goethe, um fascinante amálgama de várias palavras que se fundem para formar outra, até então inexistente: Coronamutationsgebiet é uma “região de mutação do vírus”; Impftourismus se refere ao “turismo de vacina” entre diferentes estados, em busca de locais onde a imunização avança mais rápido; Klopapierhysterie é a “histeria do papel higiênico” que acometeu muita gente no início da quarentena; Kontaktnachverfolgungsapp define um “aplicativo de rastreamento de contatos”; Lockdownverweigerer são os “negacionistas do lockdown”… E assim por diante.

É interessante notar que o impacto de determinado acontecimento na sociedade pode ser medido, entre outras coisas, pela chacoalhada que ele causa na língua. As invenções alemãs são um retrato bem-acabado da relação simbiótica entre o desenrolar da história e o nosso jeito de falar. Por aqui, os brasileiros sempre foram pródigos em criar neologismos ou estabelecer novas acepções para expressões antigas, que ganham carga e significado renovados ao descrever o cenário político do país. Alguns exemplos da nossa criatividade semântica, desde o momento mais recente e rebobinando para as administrações anteriores: bozo, bolsominion, gripezinha, e daí?, pequi roído, posto ipiranga, 01, 02, 03, ele não, petralha, picolé de chuchu, mensalão, tchau querida, pixuleco, japonês da federal, coxinha, mortadela, engavetador geral da república, anões do orçamento, acabar em pizza, etc, etc, etc, etc. Só um brasileiro é capaz de compreender todas as nuances contidas nesses termos, que brotam de forma espontânea, no calor do momento.

É claro que, com o passar do tempo – e com o consequente desaparecimento desses assuntos do noticiário –, muitos dos novos vocábulos morrem na mesma velocidade com que nasceram. Mas, enquanto estão ativos e presentes na boca do povo, eles são vistos por intérpretes de conferência com um misto de interesse profissional e cautela. Sempre que aparecem no discurso de uma pessoa que estamos traduzindo, essas expressões fazem soar uma sirene interna: “atenção, risco de levar uma rasteira”. No calor da tradução simultânea, com apenas alguns segundos para produzir uma solução correta e que faça sentido para um estrangeiro, como explicar todo o significado contido em rachadinha? Ou, na mão inversa, como esclarecer para um brasileiro, num piscar de olhos, que uma Öffnungsdiskussionsorgie (o neologismo cunhado por Angela Merkel) é um excesso – ou orgia – de discussões sobre a reabertura após um período de lockdown?

É o tipo de situação em que o intérprete provavelmente vai se render à conclusão de que alguma perda é inevitável: por mais que se arrume uma solução no outro idioma, ela não será capaz de transmitir todo o contexto que vem a reboque da expressão original. Nesses casos, o melhor a fazer é buscar uma explicação curta e simples, que transmita o cerne da ideia, para não deixar na mão o ouvinte que depende da tradução simultânea (no caso da rachadinha, o intérprete pode, por exemplo, dizer algo como “suspeitas de corrupção”). Quem trabalha com idiomas sabe que o nosso cotidiano tem dessas: em algumas situações, é preciso aceitar que nenhuma opção feita pelo tradutor surtirá no público internacional o mesmo efeito causado sobre um brasileiro (que dispõe de uma série de informações sobre o cenário à qual se refere o neologismo). Essas pequenas frustrações, porém, são compensadas pelo prazer de compreender e enxergar beleza até mesmo em palavrões como Coronahoffnungsträger – algo como “portadores de esperança do corona”, outra novidade do alemão, criada para definir medicamentos ou pessoas que trazem boas notícias na luta contra a COVID-19.

Texto de Beatriz Velloso.