09 Jul / 2020

“Sorbet de Chayotte”, “The Japanese cop”, “Papá Pitufo”: A difícil arte de traduzir (literalmente) a política brasileira

Antes de mais nada, vamos logo esclarecendo: este é um texto sobre tradução, e não sobre política. A VOX não se manifesta sobre inclinações eleitorais, mas não resiste a um bom motivo para falar sobre questões tradutórias. E a política brasileira é um prato cheio para quem gosta de um belo desafio linguístico. Como verter “pixuleco” para um idioma estrangeiro? Como explicar para um americano, um dinamarquês ou um italiano quem é o “japonês da federal”? Como descrever em outra língua a cisão entre “coxinhas e mortadelas”?

Quando esse tipo de expressão aparece numa palestra e o intérprete tem poucos segundos para bolar uma solução em inglês (ou em qualquer outro idioma), é preciso pensar rápido e chegar a uma versão curta, clara, que não tome muito tempo da tradução e seja compreendida pelos estrangeiros da plateia que dependem da tradução simultânea. Por isso a VOX decidiu conversar com outra categoria profissional que se depara com desafios semelhantes, ainda que num contexto diferente: os correspondentes da imprensa estrangeira que cobrem o noticiário do Brasil. Cabe a eles explicar, lá fora, o que acontece por aqui.

Há alguns dias o diário francês Le Monde publicou uma reportagem sobre Geraldo Alckmin. Logo no primeiro parágrafo, a jornalista Claire Gatinois resumiu a imagem que colou no candidato do PSDB: “sorbet de chayotte”. Além de traduzir o “picolé de chuchu” para a língua de Voltaire, Claire também acrescentou uma explicação para os leitores francófonos: “o apelido vem de uma cucurbitácea insípida, encontrada em países de clima quente”. À semelhança do que ocorre com intérpretes e tradutores, a jornalista vive esbarrando em expressões difíceis de traduzir. “O português tem palavras específicas e engraçadas, que não encontram equivalente em francês”, contou ela em entrevista à VOX. “´Chulé’ é uma delas. Na hora de cobrir política, a situação é ainda mais complicada”, continua a jornalista, que vive em São Paulo desde 2015.

Claire cita como exemplo a expressão “posto Ipiranga” – alcunha dada a Paulo Guedes, guru econômico de Jair Bolsonaro, que responder a qualquer pergunta sobre economia feita ao candidato. “Seria complicado explicar ao leitor francês que o apelido vem de uma campanha publicitária, porque aí eu teria de descrever as propagandas… Ficaria confuso demais”, diz ela. Para driblar o problema, a repórter do Le Monde optou por uma solução mais simples e conhecida de seu público: Paulo Guedes virou “un couteau suisse”, ou “um canivete suíço” com várias funções. “A expressão passa a mesma ideia, de um jeito mais fácil de entender”.

A saída adotada por Claire é utilizada com frequência na tradução simultânea. Diante de um conceito muito local ou específico de determinada cultura, o intérprete quase nunca tem tempo de dar toda a explicação necessária, e precisa encontrar um equivalente rápido e de fácil compreensão para seus ouvintes – mesmo que a tradução se afaste um pouco do original. Por ser ao vivo, falada e não permitir notas de rodapé (recurso usado nos livros para as Notas do Tradutor), a interpretação de conferências pede soluções imediatas. Quando não há uma tradução exata, o que importa é transmitir a mensagem e preservar o sentido, como fez a correspondente francesa com o canivete suíço.

Alguns termos surgidos na disputa eleitoral deste ano são mais simples de traduzir. Um deles é o #elenao da campanha anti-Bolsonaro – que ganha cada vez mais corpo, a ponto de ter virado reportagem no jornal americano The New York Times. Na matéria escrita por Shasta Darlington, chefe da sucursal do diário no Rio, a hashtag virou #nothim. Mas a política brasileira é cheia de “jabuticabas”: situações, palavras e expressões que só existem aqui, difíceis de explicar para um estrangeiro. Na redação do El País, não raro os jornalistas e a equipe de tradutores fixos da publicação se envolvem em debates sobre a melhor forma de dizer tal ou qual coisa. O mesmo “picolé de chuchu” traduzido para o francês também já foi chamado de “helado de chayote” pelo veículo espanhol. “Recentemente optamos por ‘un boniato’, uma espécie de batata doce que também é sinônimo de comida insossa”, explica Rodrigo Leite, coordenador de traduções do El País Brasil, em conversa com a VOX.

O diário argentino Clarín fez uma extensa reportagem sobre candidatos inusitados a cargos legislativos – gente como Tiririca, descrito no texto como “um payaso analfabeto” (um palhaço analfabeto). O editor do texto, Abel Escudero Zadrayec, surpreendeu-se ao topar com Roberto Braga de Oliveira, candidato a deputado pelo Maranhão, que se apresenta como Macaco Velho (“Mono Viejo”) e aparece nos santinhos de campanha vestindo uma camisa do… Boca Juniors. Mas a tradução mais divertida foi para o candidato Adelmo, do Distrito Federal: “Papá Pitufo”. O nome em português que deu margem a essa engraçada expressão em castelhano está no final desta reportagem.

Em alguns casos, ao contrário do exemplo do canivete suíço, o correspondente não escapa de uma longa explicação – sob pena de deixar o leitor no escuro, sem entender as histórias surreais que só a política brasileira é capaz de produzir. Num artigo sobre “the Pixuleco baloon”, publicado durante as manifestações pró-impeachment, o jornal Los Angeles Times teve de fazer vários esclarecimentos para que os americanos compreendessem o que era o tal boneco: “O balão inflável foi batizado com uma gíria que significa propina em português”, esclareceu a correspondente Jill Langlois. E continuou: “The Pixuleco leva no peito o número 171, artigo do código penal que tipifica o crime de estelionato”. Na época do impeachment, o Washington Post tentou fazer seus leitores entenderem a cisão entre coxinhas e mortadelas. Os primeiros foram descritos como o estereótipo do “playboy rico e burguês, que usa camisa polo em tons pastel, óculos Ray-Ban comprados em Miami e um relógio grande que ganhou do pai no Natal […], cujo apelido vem de uma famosa comida de rua do Brasil”. Já os segundos, também chamados de “petralhas”, são rotulados como “gente preguiçosa que vive de pensões do governo, sindicalistas em greve, universitários barbados que estudam Sociologia”. O Post até tentou ensinar os americanos a pronunciar os dois termos: “koh-SHEEN-yas” e “pet-RAL-yas”.

Entre os correspondentes de língua inglesa que atuam no Brasil, alguns termos estão consagrados: “Operation Car Wash”, para a Operação Lava Jato, ou “coup monger”, para golpista. O espanhol La Vanguardia, de Barcelona, fala da “investigación Lava Coches”. Há também traduções para expressões que os brasileiros usam há tempos com grande naturalidade, sem pensar duas vezes – mas que não fazem sentido para ouvidos estrangeiros. Alguns exemplos: “the MacGyvering out of difficult situations” (que transforma em verbo o engenhoso personagem da TV McGyver para descrever nosso “jeitinho” de driblar dificuldades, na explanação do Washington Post); “to end up with pizza” (acabar em pizza, no britânico The Guardian) ou “he steals, but he acts” (rouba mas faz, na edição da revista The Economist que estampou Bolsonaro na capa com a manchete “uma ameaça para a América Latina”). O mesmo Guardian foi direto ao ponto num perfil do policial de ascendência oriental que ganhou fama nas fotos de primeira página, escoltando figurões algemados: o “japonês da Federal” virou “the Japanese cop”. Diante de todos esses abacaxis que a imprensa estrangeira precisa descascar na hora de traduzir – literalmente – nosso país, vale lembrar a famosa frase atribuída a Tom Jobim: “o Brasil não é para principiantes”. Isso vale tanto para jornalistas quanto para tradutores.

P.S. Para quem chegou até aqui, vai a resposta sobre o Papá Pitufo: é assim que os argentinos chamam o personagem Papai Smurf dos desenhos animados. E é assim – isso mesmo, como Papai Smurf – que o candidato Adelmo se apresenta nas urnas.