Numa entrevista concedida em 1993 ao programa de David Letterman, Jimmy Carter lembrou o raciocínio ligeiro de um tradutor no Japão e uma mancada linguística na Polônia
Começam no minuto 4:20 deste vídeo (infelizmente sem legendas em português) duas histórias divertidas e ilustrativas sobre interpretação, contadas pelo ex-presidente americano Jimmy Carter, que faleceu em 29 de dezembro aos 100 anos.
Os dois episódios têm muito a ensinar sobre o ofício dos intérpretes – e sobre como esse trabalho fica melhor quando conta com a parceria de quem está sendo traduzido.
Algumas observações, que farão mais sentido para quem assistir ao vídeo antes:
· Piadas e trocadilhos são uma das coisas mais difíceis e perigosas de traduzir. Com frequência, é impossível transportar a graça do idioma original para o idioma de chegada, seja por diferenças linguísticas ou culturais intransponíveis. Por isso, sempre que um orador planeja contar uma piada para um público estrangeiro, é recomendável combinar antes com o intérprete. Assim, o profissional tem tempo para bolar uma tradução divertida, e pode também alertar o palestrante caso o humor seja inadequado ou ofensivo para a plateia do outro país.
· Provavelmente foi esse o cenário enfrentado pelo intérprete que verteu a fala de Carter para o japonês. E a solução encontrada pelo colega foi ótima! Uma vez que a piada era impossível de traduzir, ou talvez inconveniente para o público de Osaka, ele simplesmente disse: “o presidente Carter contou uma história engraçada, e vocês precisam rir”. A situação toda ficou realmente cômica, e arrancou gargalhadas da plateia – para deleite do ilustre visitante.
· Sobre o caso na Polônia, o livro “White House Interpreter”, de Harry Obst (intérprete de alemão de vários presidentes americanos) narra os bastidores desse deslize tradutório. A viagem de Carter a Varsóvia ocorreu em 29 de dezembro de 1977, e o Departamento de Estado não encontrou nenhum intérprete de polonês disponível às vésperas do réveillon. Recorreu então a Steven Seymour, que na verdade era tradutor de russo, mas havia passado alguns anos na Polônia e foi escalado para quebrar um galho. Seymour ficou mais de uma hora ao relento na pista do aeroporto de Varsóvia, debaixo de neve no gélido inverno polonês, à espera do Air Force One e do pronunciamento que o presidente faria ali mesmo, após pousar. O intérprete até tentou obter uma cópia do discurso de Carter, mas o pedido – essencial para uma boa tradução – foi negado pelos assessores do presidente. A combinação desastrosa (intérprete sem conhecimentos profundos da língua, ensopado e tiritando de frio, com péssimas condições de trabalho, e sem receber o discurso de antemão) deu no que deu: exausto e despreparado, Seymour traduziu “compromisso com o amor pela liberdade” por “compromisso com o amor livre”, diante de autoridades de um país extremamente católico. Imagine o vexame.
· No mesmo livro, Obst conta que o embaraço vivido na Polônia acabou rendendo frutos para o Departamento de Serviços Linguísticos, em Washington: depois de anos batalhando por uma estrutura melhor, a Casa Branca finalmente entendeu que os tradutores precisavam de reforços (profissionais experientes em mais línguas, e não apenas quebra-galhos), e determinou que todos os discursos a ser interpretados tinham de ser enviados com antecedência para os intérpretes. Os linguistas passaram até a participar da redação dos pronunciamentos, uma vez que conheciam as culturas de diferentes países e podiam identificar frases com potencial de causar embaraços diplomáticos.
· Voltando ao programa de David Letterman, chama atenção a forma como o entrevistador se refere à presença do intérprete na comitiva presidencial: “o senhor fica à mercê [grifo meu] do tradutor”, como se esse profissional fosse um carrasco ou um sequestrador, e a pessoa traduzida fosse um refém. Talvez seja possível inverter o raciocínio e dizer “o senhor tem a sorte de contar com um intérprete”. Ninguém é capaz de falar e entender todas as línguas do mundo, e muito menos tem essa obrigação. O trabalho do intérprete é justamente permitir a comunicação. Ele, mais do que ninguém, será compreensivo e generoso com quem não domina o idioma estrangeiro.
· Finalmente: se você tem vergonha de não falar uma segunda língua, não se culpe. Você não está sozinho. Calcula-se que cerca de 40% da população mundial fala apenas o idioma materno – o equivalente a mais de três bilhões de seres humanos! Isso inclui a maioria dos presidentes americanos que, embora comandem o país mais poderoso do mundo, são quase todos monoglotas. É claro que aprender línguas estrangeiras é uma grande vantagem profissional, uma forma de abrir portas para pessoas e culturas, um jeito de tornar a vida mais rica e interessante. Mas, quando isso não é possível (por qualquer motivo que seja), tradutores e intérpretes profissionais – e, em alguns casos, ferramentas automáticas – existem para superar a barreira do idioma. Mesmo quando a piada é ruim.
Texto por: Beatriz Vellozo