Autora de versões em inglês de Machado de Assis e Mário de Andrade, Flora Thomson-DeVeaux é responsável pelas legendas que acompanham “Ainda Estou Aqui” na carreira internacional do filme. Seu trabalho, sobre o qual ela fala nesta entrevista, mostra que a tradução exerce papel fundamental (embora frequentemente oculto) na indústria cinematográfica.
Este texto poderia ser ilustrado com uma foto de Fernanda Torres. Ela merece todos os aplausos e reconhecimentos (e, cá entre nós, uma imagem dela provavelmente atrairia mais cliques, curtidas, visualizações, etc.)
Nas próximas linhas, porém, quero dar destaque a outra pessoa de grande importância para o sucesso de Ainda Estou Aqui no exterior: Flora Thomson-DeVeaux, tradutora responsável pelas legendas do filme em inglês. Sem esse trabalho esmerado, o público estrangeiro não teria acesso aos poderosos diálogos de I’m Still Here.
Você já conhece DeVeaux. É dela a mais recente versão em inglês de Memórias Póstumas de Brás Cubas, que viralizou quando a influenciadora americana Courtney Henning Novak fez um vídeo falando maravilhas sobre a obra de Machado de Assis – e, por tabela, sobre a tradução. A história desse improvável hit literário, que entrou para a lista de mais vendidos da Amazon nos Estados Unidos (num país que lê pouquíssima literatura traduzida), está contada num ótimo episódio do podcast ” Rádio Novelo Apresenta”.
DeVeaux nasceu em Charlottesville, no estado da Virgínia. É PhD, tanto no sentido literal quanto figurado, em português e estudos brasileiros, pela Brown University. Vive há anos no Rio, é naturalizada (e casada com uma) brasileira e torce para o Botafogo. 2024 deve mesmo ter sido um ano de grandes alegrias para ela.
Assistir à versão legendada de Ainda Estou Aqui é perceber que esse trabalho exige sutileza, atenção minuciosa ao detalhe, conhecimentos profundos de ambas as línguas e culturas, um grande poder de síntese, ouvido afiado para bolar soluções que soem naturais na boca dos personagens – e muita humildade. As pequenas sacadas tradutórias de DeVeaux fazem imensa diferença para transmitir o conteúdo, e sobretudo o clima e o panorama histórico, do filme.
Um exemplo: na cena em que Rubens Paiva (Selton Mello) é levado preso, ele diz: “Eu já volto, filha.” Nas legendas: “I´ll be back soon, sweetie”, [grifos meus]. A escolha da palavra “sweetie” é intencional, pensada, e transmite o tom doméstico e carinhoso de um pai tentando acalmar uma criança assustada.
Ou então: “os milicos vão cair matando”. É nessa hora que entram em cena a humildade e a consciência dos limites da tradução – e, mais ainda, da legendagem. Nos poucos caracteres e segundos em que o texto fica na tela, seria impossível explicar a carga crítica embutida no termo “milico”. Nessa fala, é preciso ainda encontrar um equivalente curto e claro para a expressão “cair matando”. DeVeaux acerta na mosca: “The military will hit hard”. De forma enxuta, idiomática e fácil de entender, a legenda dá o recado para espectadores que não compreendem português.
Seria possível pinçar dezenas de trechos que evidenciam a habilidade da tradutora, elevada à mais alta potência nas versões em inglês de Memórias Póstumas e de O Turista Aprendiz, de Mário de Andrade. (Este último levou DeVeaux a repetir um pedaço da viagem que o escritor paulistano empreendeu à Amazônia em 1927, o que dá uma ideia do grau de envolvimento da tradutora com texto e autor traduzidos.)
Por mensagens de WhatsApp, DeVeaux falou da experiência de legendar Ainda Estou Aqui, das diferenças entre tradução para cinema e tradução literária e, é claro, celebrou as vitórias do filme e de Fernanda Torres.
Sobre o trabalho com tradução para legendagem:
Trabalho com legendagem esporadicamente, mas há mais de uma década. Tudo começou em 2011, quando fui assistir a um filme do [cineasta] Eduardo Coutinho com um amigo americano e tive que ficar pausando para explicar as falas, porque as legendas não davam conta do original. Reclamei com o pessoal da [produtora] Videofilmes, que me desafiou a pegar a legendagem do filme seguinte do Coutinho, As canções. De lá para cá, tenho trabalhado com alguns diretores e traduzido uma dúzia de filmes: Fla x Flu, Últimas conversas, Posfácio: imagens do inconsciente, Orestes, No intenso agora, Deslembro, Narciso em férias, Madalena, Manas, 171, agora Ainda Estou Aqui, e provavelmente mais algum que não me veio à cabeça agora. Também pratico um tipo de tradução ainda mais invisível, mas tão importante quanto para a indústria cinematográfica: todo ano costumo traduzir um ou mais roteiros de filmes para que possam ser lidos por potenciais coprodutores estrangeiros.
Sobre as dificuldades e características específicas de traduzir para legendas:
Sou prolixa, amo notas de rodapé, e sinto que diálogos são das coisas mais difíceis de se traduzir, então legendas me provocam um terror saudável: não tem tempo de manobra e não tem choro nem vela. Mas faço sempre que posso justamente para me desafiar. Pelo fato de trabalhar de forma bissexta com legendagem, e porque muitas vezes o texto provisório chega antes do corte final, normalmente faço pelo menos duas versões bem diferentes: uma passada inicial em inglês e uma bem mais enxuta, tentando melhorar o timing e o tamanho dos textos.
Sobre os desafios de verter os diálogos de “Ainda Estou Aqui” para inglês:
Graças a Deus, sofro de um pouco de amnésia tradutória. Do Ainda Estou Aqui, o que eu mais lembro é algo que nem entrou na obra final. Em várias versões do roteiro, fiquei brincando com possíveis traduções dos apelidos engraçados que Rubens dava aos filhos, como “Cacareco” e “Lambancinha”, mas isso funcionaria melhor numa tradução do livro – acho que no último corte só entrou um “Cacareco”, e acabei achando melhor não entrar no mérito. A legenda não pode causar esse tipo de ruído desnecessário, porque é muita coisa para processar de uma vez só – imagem, som, tom, movimento, texto…
Sobre a sensação gostosa de encontrar uma tradução que encaixa direitinho, quando a gente olha para o resultado e pensa: “poxa, isso aqui ficou bom!”:
Minha amnésia tradutória é ainda mais eficaz quando se trata de versões bem-sucedidas: só vem um alívio muito grande.
Sobre o sucesso do filme e de Fernanda Torres no exterior:
Esta é a primeira vez que um filme que eu legendei – e aqui cabe dizer que, pela pressa e pelas circunstâncias a legendagem do corte final foi feita a quatro mãos com a [co-diretora] Daniela Thomas, que estava na ilha de edição junto com o Walter Salles e fazia uma versão provisória para me mandar – tem uma carreira internacional tão estrondosa. Por um lado, sei que o texto não apresentava enormes desafios e que a atuação da Fernanda Torres provavelmente se destacaria com as piores legendas do mundo; mas fico contente de ter feito parte da empreitada. Nesses dias visitei minha família nos Estados Unidos e comentei do filme com a minha irmã. “Oh, that’s the one everyone’s been talking about!” [Ah, então é desse filme que tá todo mundo falando!]
Crédito da foto: Paula Scarpin
Texto por: Beatriz Vellozo