08 Nov / 2021

Não somos um algoritmo. Somos gente de carne, osso, um cérebro ligeiro – e um coração

Eu me emocionei e me identifiquei com o intérprete de Libras que não conteve o choro ao vivo e teve de ser substituído durante o depoimento à CPI de uma jovem que ficou órfã de pai e mãe, vítimas da Covid.

Há algumas semanas, passei por uma situação semelhante. Durante um evento sobre luto, com participantes estrangeiros e tradução simultânea, foram compartilhadas várias histórias dolorosas de gente que enfrentou a barra pesada de perder parentes próximos e amigos queridos. Lá pelas tantas, uma especialista americana de um serviço para pessoas enlutadas relembrou o dia em que um menino de 6 anos chegou a uma reunião de apoio com um pedido: “meu pai morreu e eu quero ele de volta”.

No momento em que tive de falar essas palavras em português, em primeira pessoa, me colocando no lugar daquela criança inconformada com a partida repentina do pai, não consegui segurar a onda. O nó travou a garganta, a voz falhou, os olhos se encheram d’água. A colega intérprete que estava comigo logo sacou que eu estava chorando, e assumiu o microfone. A reação de carinho e compreensão das pessoas que escutavam a interpretação e se manifestaram pelo chat (reproduzo as mensagens aqui, sem identificar os autores) me tocou ainda mais. Foi um alívio: eu me senti autorizada a chorar, a demonstrar sentimentos, a sair – ainda que apenas por alguns instantes – da impossível e falsa posição de neutralidade atribuída aos intérpretes. Sou grata ao público daquele webinar, que acolheu minha emoção; à imensa sensibilidade e competência da minha concabina; aos que compartilharam narrativas pungentes e confiaram sua fala às intérpretes.

Não somos um algoritmo, uma inteligência artificial. Somos gente de carne, osso, um cérebro ligeiro – e um coração. E como é bonito ver o lado humano da interpretação. Assim como fizeram comigo quando chorei aquele dia, mando meu abraço solidário ao intérprete de Libras João Gleverson de Oliveira, que fez um lindo trabalho e transmitiu para a comunidade surda a emoção da jovem durante a CPI. E que atire a primeira pedra o intérprete que nunca derramou uma lágrima no escurinho da cabine.

(Em tempo: lembrei também do episódio com a Raffaella de Filippis Quental, uma tremenda intérprete de italiano e professora de interpretação da PUC-Rio, que se emocionou há alguns anos ao traduzir uma das mesas da Flip.)

Texto de Beatriz Velloso.