18 Out / 2021

“Até pensei que fosse minha”​

Ouvir versões de músicas brasileiras em outros idiomas é um prazer especial. Uma melodia conhecida, apresentada numa língua diferente, nos reconecta a uma velha canção como se estivéssemos ouvindo pela primeira vez. Palavras e rimas estrangeiras são um passe de mágica: a música ganha vida nova, um tempero exótico, um estranho encantamento que faz a gente ver com outros olhos (e escutar com outros ouvidos) uma batida familiar. “Eu já ouvi isso antes… Mas não estou reconhecendo”. Essa mistura de intimidade e descoberta é uma delícia.

Para encontrar um primeiro exemplo não é preciso ir longe do ponto de vista linguístico (embora seja necessário atravessar o Atlântico): António Zambujo cantando Injuriado em português de Portugal parece, por vezes, estar falando um idioma quase incompreensível – e, de certa forma, está mesmo. O próprio título dado por Zambujo a seu lindo álbum com músicas de Chico Buarque pode ser aplicado à relação dos portugueses com a língua brasileira, que herdamos deles e fizemos nossa: “Até pensei que fosse minha”.

São tantas versões legais, muitas delas de sambas famosos. Que tal a cubana Celia Cruz transferindo Você Abusou para o espanhol em Usted Abusó? A simples troca do conhecido verso “tirou partido de mim” por um sonoro “sacó provecho de mí”, somada à substituição dos tamborins por uma levada de salsa, transforma o sucesso de Antônio Carlos e Jocafi num hit caribenho. Ou Caterina Valente fazendo um ítalo-Samba de Uma Nota Só, toda delicada: “Per un samba piccolino / Una nota basterà”. Olha que coisa mais linda e mais cheia de graça esse versinho cantarolado em italiano! O francês Pierre Vassiliu manteve a batucada brazuca em sua versão de Partido Alto, também de Chico, mas mudou completamente a letra. Até porque, convenhamos, seria um baita desafio traduzir e preservar as nuances, referências e brasileirismos de frases como “Vou correr o mundo afora/ Dar uma canjica / Que é pra ver se alguém se embala / Ao ronco da cuíca”). E para dar de vez um nó na cabeça da gente, o negócio é ouvir Mas Que Nada em japonês, com Pink Martini: não dá pra saber se estamos em Copacabana ou em Tóquio, comendo um yakissoba em Nagoya ou tomando uma caipirinha no Bracarense. (Aqui, para descobrir se a letra original foi preservada ou virou de cabeça para baixo, conto com a ajuda da Anna Ligia Pozzetti).

O mesmo Tom Jobim que compôs o Samba de Uma Nota Só ficava tiririca com as versões para inglês de suas letras, feitas por Norman Gimbel. (Curiosidade rápida: além de transpor a bossa de Tom para o inglês, Gimbel escreveu Killing Me Softly, clássico de Roberta Flack – que, por sua vez, recebeu uma versão em português com a cantora Joanna, que eu fui buscar lá no fundo do baú). No livro Chega de Saudade, Ruy Castro conta que Tom ficou particularmente aborrecido com o extreme makeover sofrido por Inútil Paisagem: onde Elis Regina cantava “pra quê tanto céu, pra quê tanto mar, pra quê?” (só de ouvir a gente pensa num fim de tarde em Ipanema), Gimbel sapecou “there’s no use of a moonlight glow / or the peaks where winter snows” (fomos parar numa noite gelada nas montanhas do Colorado ou coisa do gênero). Pode até ser verdade que a leitura do americano descaracterizou o clima marcadamente carioca do original. Mas quem resiste a Frank Sinatra declamando esses versos com sua voz de veludo no disco gravado com o próprio Tom? Quando a gente se dá conta, está achando tudo uma beleza – inclusive os picos nevados.

A música e a língua têm esse poder sensorial. E, como hoje é sexta, aumente o volume, afrouxe o nó da gravata (metaforicamente falando) e embarque numa viagem linguístico-melódica. Vale a pena.

Texto de Beatriz Velloso.