13 Set / 2021

In the arm or in the “bumbum”?, eis a questão

“Why does everyone get in the arm, but I’m getting it in the bumbum?”. Nada como um olhar estrangeiro para a gente achar graça em coisas tão nossas que até passam batidas em meio ao toró de informações do dia a dia. Jornais e sites brasileiros já haviam noticiado a inesperada parte do corpo escolhida pelas autoridades sanitárias de Joinville para aplicar a vacina contra a Covid-19: não o braço, e sim o traseiro. Em suas matérias, os veículos locais optaram por termos com um jeitão mais médico-científico, como “glúteo”, “ventroglúteo”, “nádegas”, etc. Mas eis que Terrence McCoy, correspondente do Washington Post no Brasil, decide dar nome aos bois: “I found out that almost everyone was taking the vaccine in the bunda“, escreveu ele, sem pudor, fazendo questão de deixar o último elemento da frase em português – num sinal claro de que o vocábulo merece deferência.

É curioso como a mesma palavra ecoa de um jeito diferente quando surge intrometida em outro idioma, um elemento extravagante no meio de uma sentença aparentemente prosaica. Nas reportagens escritas em português, talvez realmente ficasse estranho e até desrespeitoso escrever “bunda” assim, sem constrangimento. (Minha avó, que cresceu numa família pudica em Alagoas, dizia que na casa dela a palavra era proibida: só se referia a essa região da anatomia humana pelo código cifrado “tundá”.) No entanto, misturados a um texto bem-humorado em inglês – ou, para todos os efeitos, em qualquer outro idioma estrangeiro –, esses termos se revelam graciosos, pitorescos. É como se a gente redescobrisse um orgulho ufanista em relação à própria língua: só nós, brasileiros, temos uma palavra tão peculiar quanto “bumbum”. Está certo que o bumbum propriamente dito foi associado a uma porção de estereótipos grosseiros e machistas sobre o Brasil e principalmente sobre a mulher brasileira (o repórter americano lista alguns deles em seu texto). Mas, aqui, me refiro a aspectos fonéticos, semânticos, etimológicos: a matriz nitidamente africana, que nos conecta a um naco determinante da nossa história; a grafia que cria uma representação quase visual, com duas sílabas curvilíneas postas lado a lado; o som que retumba como um instrumento de percussão.

(Informação para nerds linguísticos: bumbum é um hipocorístico, uma palavra adaptada para uso doméstico e afetivo, de bunda – que, por sua vez, vem do quimbundo, língua falada em Angola, e significa “quadris, nádegas”.)

Terrence McCoy também não teve medo de fazer uma porção de trocadilhos em inglês – nem mesmo no título: “Most everyone gets the coronavirus vaccine in the arm. Butt this Brazilian city is shooting lower” (grifo meu para o termo em inglês, equivalente a bumbum, que o jornalista usou no lugar do conhecido “but” adversativo, grafado com um único T). E mais adiante: “City spokesman Thiago Boeing said officials aren’t allowing anything to fall between the cracks.” Em inglês, “to fall between the cracks” significa “deixar alguma coisa escapar” (aqui, usada na negativa, a expressão traz o sentido de que as autoridades estão atentas a tudo, seguras da escolha de aplicar o imunizante mais embaixo). Mas “butt crack” é também uma gíria para o bom e velho “cofrinho” – e aí o jogo de sentidos fica claro. Eu sei que trocadilhos são polêmicos, e quase invariavelmente vêm acompanhados do adjetivo “infame” (o que considero uma tremenda injustiça). A prova de que são um elemento linguístico sofisticado é a dificuldade de traduzi-los, conforme apontou Paulo Rónai em seu ensaio “Defesa e ilustração do trocadilho”. O caso acima é exemplar: a frase escrita por McCoy fica divertida em inglês, no contexto da reportagem. Mas quando a gente passa para o português, perde a graça – como uma piada ruim, que o interlocutor não entende e a gente precisa explicar o final.

Moral da história: tomemos todos a vacina. Não importa se ela vai “in the arm or in the bumbum”.

 

Texto de Beatriz Velloso.