28 Jun / 2021

Os fones na cabeça do “açougueiro da Bósnia”

O direito de ser julgado e se defender na própria língua é tão essencial quanto o acesso a advogados e a atendimento médico – não importa as atrocidades cometidas, como no caso do ex-general sérvio Ratko Mladić.

A foto acima mostra o ex-general sérvio Ratko Mladić em Haia, no final da semana passada, enquanto ouvia pelos fones de tradução simultânea a decisão proferida pelo mecanismo que substituiu o Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia. Reunida para julgar um recurso apresentado pela defesa de Mladić – conhecido como o “açougueiro da Bósnia” –, a corte decidiu manter a pena de prisão perpétua para o homem condenado por genocídio e crimes contra a humanidade. Mladić foi figura central da guerra nos Bálcãs, sobretudo por sua participação no “massacre de Srebrenica”, em 1995, quando oito mil muçulmanos foram assassinados (tema do filme “Quo Vadis, Aida?”, sobre o qual escrevi aqui outro dia).

Para profissionais de tradução simultânea, o detalhe dos fones de ouvido salta aos olhos: “intérpretes trabalhando”, a imagem avisa. E faz pensar. Traduzir um julgamento dessa magnitude significa fazer parte da decisão sobre o resto da vida de um homem ligado a crimes que destruíram milhares de famílias e, portanto, são foco de grande atenção internacional. A responsabilidade é imensa. Uma pessoa leiga, por outro lado, poderia pensar: para quê oferecer tradução simultânea a um sujeito capaz de tantas atrocidades? Por que motivo alguém que causou tanta morte e sofrimento deveria ter acesso a esse serviço?

Eis aí uma semelhança entre a interpretação de conferências, a advocacia e a medicina (entre muitas outras que poderiam ser citadas, como anos e anos de estudo, alta exigência técnica e intelectual, muitos dias de preparação para cada trabalho, etc.). Em tribunais, julgamentos e arbitragens, diversas legislações do mundo, inclusive a brasileira, preveem que tanto réus quanto testemunhas devem ter o direito de falar no idioma de sua escolha – quase sempre o idioma materno. Caso essa língua seja diferente da falada oficialmente pela corte, intérpretes entram em cena para assegurar a comunicação. Da mesma maneira, qualquer ser humano – mesmo um dos maiores criminosos de guerra do século 20, como é caso de Mladić – tem direito a ampla defesa e a atendimento médico. São direitos fundamentais, inquestionáveis, e em contextos jurídicos a interpretação entra nesse pacote. Graças a ela, os participantes do julgamento têm a garantia de um procedimento justo e equilibrado, sem que nenhuma das partes seja prejudicada por não dominar este ou aquele idioma.

Fazer esse tipo de tradução (ou defender esse tipo de cliente/atender esse tipo de paciente) envolve questões éticas e crenças pessoais, é claro. O intérprete tem de estar pronto a oferecer uma tradução simultânea com a mesma qualidade, seriedade e fidelidade que faria para qualquer outra pessoa. Caso se considere impedido por algum motivo – seja ele de natureza religiosa, étnica, política, etc. –, o profissional de tradução simultânea deve declinar da missão.

Além disso, o intérprete que aceita a tarefa deve estar ciente da possibilidade de ser chamado a traduzir descrições de crimes desumanos, cenas de matança, depoimentos de vítimas traumatizadas, etc. Nesse cenário, duas habilidades somam-se às técnicas de interpretação que aprendemos na formação profissional e no exercício cotidiano do ofício, e também aos profundos conhecimentos dos idiomas envolvidos e da terminologia específica: é preciso ter sangue frio e estômago. E mais: há que se estar preparado para interpretar em diferentes modalidades durante o mesmo julgamento (consecutiva, intermitente, simultânea, tradução de documentos à primeira vista).

Jean-Paul Akayesu durante seu julgamento no Tribunal Penal Internacional para Ruanda

Certamente foi assim no julgamento do recurso apresentado pela defesa de Mladić – que, segundo os registros do tribunal, ordenou aos soldados que atirassem “apenas em carne humana”. Foi assim também nas audiências envolvendo Slobodan Milošević (1941 – 2006), outro réu julgado pelo Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia, que morreu na prisão, em Haia, antes que o veredito fosse anunciado. Ou no julgamento de Jean-Paul Akayesu, um dos principais acusados pelo Tribunal Penal Internacional para Ruanda, cujo caso criou a jurisprudência do genocídio por estupro, no episódio envolvendo mulheres da etnia Tutsi. A ex-presidente de uma dessas cortes, Gabrielle Kirk McDonald, escreveu sobre a dinâmica de trabalho: “as salas de audiência são de última geração e os depoimentos são prestados em línguas estrangeiras, graças a tradutores e intérpretes altamente qualificados”. Foi assim também nos primórdios da interpretação simultânea, durante os Julgamentos de Nuremberg após a Segunda Guerra Mundial. Ali nasceu a interpretação como a conhecemos hoje, adotada à época para que os representantes dos países envolvidos (Inglaterra, Estados Unidos, França e Rússia, do lado vencedor; e a Alemanha derrotada) pudessem falar e ouvir os procedimentos em seus respectivos idiomas.

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O raciocínio vale também, é claro, para delitos menos “midiáticos”, que nem chegam a atrair a atenção da imprensa. Tráfico internacional de drogas, imigração ilegal, contrabando, etc. Em todas essas situações, a interpretação é um direito estabelecido pela Constituição brasileira no escopo do devido processo legal e da ampla defesa, conforme explicado na excelente mesa-redonda “Interpretação em Contextos Jurídicos”, mediada pela professora Luciana Carvalho Fonseca. E, em todos esses casos, os intérpretes atuam em cenários de grande tensão e exigência, exercendo um papel fundamental – embora, conforme explica o juiz Paulo de Almeida na mesa-redonda, nem sempre com a devida valorização e reconhecimento.

Portanto, toda vez que vir nos jornais a foto de alguém com um fone de ouvido, lembre-se: por trás desse aparelho aparentemente prosaico estão profissionais que estudaram um bocado, se prepararam durante semanas e até meses para estar ali, donos de um raro “mix” de habilidades e qualificações – e cujos serviços, em ambientes jurídicos, devem ser assegurados a qualquer cidadão, mesmo que ele seja um criminoso de guerra.

Texto de Beatriz Velloso.