09 Jul / 2020

Trump, Putin e o dilema ético de uma intérprete

O sigilo é um princípio inviolável em qualquer conversa entre médico e paciente, advogado e cliente, jornalista e fonte, padre e confessando. Mas e o segredo entre um intérprete e seu cliente? Pode um tradutor ser obrigado a revelar o conteúdo de um encontro a portas fechadas, entre duas pessoas que falam idiomas diferentes, do qual ele foi testemunha?

Essa questão se transformou numa polêmica de grandes proporções na semana passada. De um lado, o presidente americano Donald Trump; de outro, o russo Vladimir Putin. Entre ambos está Marina Gross, intérprete de russo do Departamento de Estado americano. Além do tradutor que trabalha para Putin, Marina foi a única pessoa presente à reunião particular entre os dois chefes de estado, realizada em 16 de julho em Helsinki. Depois de declarações sucessivas e (como sempre) controversas de Trump sobre o teor do colóquio – e sobre o que teria sido dito acerca da influência russa na eleição que derrotou Hillary Clinton em 2016 –, alguns democratas vêm pedindo que a intérprete seja convocada a depor na comissão de relações exteriores do senado. Marina, afirmam os oposicionistas, precisa revelar aos cidadãos americanos o que o presidente disse a Putin num encontro oficial, em que Trump representava o povo dos Estados Unidos.

A comunidade internacional de intérpretes não tardou a manifestar preocupação. “Nosso trabalho só tem valor quando somos capazes de traduzir com fidelidade, precisão e manter sigilo sobre o que escutamos”, disse ao The New York Times a intérprete de russo Yuliya Tsaplina. “Se ela [Gross] for intimada a contar o que ouviu, o episódio pode acabar com a confiança na nossa profissão”. Edna Santizo, representante da Associação Americana de Tradutores, acrescenta: “se esse precedente for aberto, é pouco provável que outros chefes de estado e diplomatas consigam se sentir à vontade na presença de um intérprete”.

Tanto nos Estados Unidos quanto em qualquer lugar onde a interpretação é uma atividade organizada, o código de ética dos tradutores profissionais é categórico: “O intérprete obriga-se à estrita observância do segredo profissional, não podendo divulgar a quem quer que seja qualquer informação obtida no decorrer de sua atividade, salvo no caso de reuniões abertas ao público em geral”. É o que diz o artigo 2º do regulamento da Associação Profissional dos Intérpretes de Conferência (APIC), entidade que representa a categoria no Brasil. Textos semelhantes podem ser encontrados em organizações de diversos países, e muitas delas saíram em defesa da intérprete e dos valores éticos da profissão. A Associação Internacional de Intérpretes de Conferência (AIIC), com sede em Genebra, divulgou um comunicado afirmando que “desde a Segunda Guerra Mundial observa-se o princípio fundamental de que um intérprete jamais será chamado a prestar depoimento”.

No Brasil, seria extremamente difícil fazer com que um tradutor fosse forçado a contar, em juízo, o que ouviu no exercício do trabalho. Tanto o artigo 5º da Constituição quanto o artigo 154 do código penal deixam claro que o sigilo profissional é assegurado por lei. “Por conta das diferenças entre os princípios que norteiam a fase de produção de provas numa investigação no Brasil e nos Estados Unidos, é pouco provável que, aqui, o intérprete seja convocado a depor”, explica Luciana Carvalho Fonseca, professora do Departamento de Letas Modernas da USP, intérprete de conferências e bacharel em Direito. “Isso se deve à proibição estabelecida pelo Código de Processo Penal brasileiro, que protege o sigilo profissional. Entretanto, o artigo estabelece que, se a parte protegida pelo sigilo concordar, o tradutor poderá depor. A interpretação envolve pelo menos duas partes além do intérprete, e qualquer uma delas também pode argumentar que o conteúdo é confidencial. Caberá ao juiz determinar quem está sujeito à proibição”.

Já a lei americana permite, sim, que um intérprete seja chamado a prestar testemunho. “Isso vem ocorrendo com mais frequência em anos recentes”, escreveu o jornalista Jazz Shaw num texto sobre o imbróglio. “A ordem judicial se sobrepõe ao código de ética que determina o caráter secreto da conversa traduzida”, completa ele. O argumento que vem sendo usado pelos defensores da intimação está resumido na declaração da senadora democrata Jeanne Shaheen, líder do movimento que quer ouvir Gross. “A intérprete é uma funcionária pública, e trabalha para o governo americano”, afirma Shaheen. “Ela deve prestar contas ao povo e ao Congresso sobre as promessas feitas pelo presidente Trump ao Kremlin”.

Não será fácil colocar Marina Gross diante da comissão parlamentar. Alguns juristas dos Estados Unidos afirmam que Trump poderia impedir a intimação, alegando que a intérprete goza dos mesmos privilégios e proteções que o presidente da nação – e que o depoimento colocaria em risco a segurança nacional. Além disso, há quem sustente que o pleito dos democratas pode ser um tiro no pé. “Senadores e deputados também fazem uso constante de intérpretes em seus encontros privados”, diz um integrante do governo, que falou ao New York Times sob a condição de não ter seu nome revelado. Trocando em miúdos: se a moda pega, nada garante que o tradutor de um desses legisladores oposicionistas também não possa ser convocado a falar perante um juiz.

A confusão envolvendo a tradutora de Trump traz à baila duas teorias conflitantes no mundo da interpretação. De acordo com a primeira, o profissional que faz a ponte entre dois idiomas é um “conduto linguístico”, mero transportador da mensagem entre uma língua e outra. “Essa teoria está ultrapassada na academia, mas ainda é adotada por algumas instituições”, esclarece Luciana. “O intérprete seria apenas um ‘equipamento’. Seguindo esse raciocínio, aqueles que defendem que a intérprete de Trump não deve depor comparam a conversa traduzida a um diálogo grampeado, no qual a profissional ali presente seria equivalente ao próprio dispositivo do grampo”. A segunda teoria afirma que, embora o intérprete faça a ligação entre dois idiomas de forma isenta e sem manifestar opiniões pessoais, ele é sim um sujeito, e não um simples transmissor.

A polêmica deve prosseguir por alguns dias, até que se decida se Marisa Gross será ou não intimada. Enquanto isso, a intérprete se verá numa situação extremamente delicada, na qual nenhum tradutor deseja estar. Não importa se acompanha um encontro entre políticos de alta patente, uma reunião de negócios entre executivos de diferentes países, uma conversa sobre estratégias comerciais, compra e venda de ações, patentes de novos medicamentos: o intérprete preserva a confidencialidade de qualquer conteúdo traduzido (à exceção, é claro, de eventos abertos, transmitidos pela internet, etc.). Assim deve ser no caso do encontro entre Trump e Putin – e sempre.