09 Jul / 2020

Parlamentares indígenas já podem fazer discursos em línguas nativas, com tradução simultânea – no Canadá

No dia 28 de janeiro, uma sessão histórica na Câmara dos Comuns do Canadá (equivalente à Câmara dos Deputados no Brasil) marcou o primeiro discurso feito da tribuna num idioma indígena, com tradução simultânea. O parlamentar Robert-Falcon Ouellette, representante da cidade de Winnipeg, dirigiu-se aos colegas em Cree – um dos mais de 60 idiomas indígenas falados no país, que o legislador aprendeu na infância, com os pais. A apresentação de Ouellette teve tradução simultânea para inglês e francês, as duas línguas oficiais do Canadá.

Tudo começou em maio do ano passado, quando esse mesmo parlamentar decidiu discursar em Cree pela primeira vez, sem a ajuda de intérpretes – numa espécie de protesto linguístico. Na ocasião, os demais legisladores não compreenderam uma palavra sequer. O episódio deu início a um debate: por que as sessões do parlamento canadense tinham tradução simultânea apenas entre francês e inglês? Por que os idiomas indígenas ficavam de fora? “Se não usarmos nossas línguas aqui, ninguém mais vai usar”, argumentou Ouellette, descendente de uma das chamadas “Primeiras Nações” canadenses, em entrevista ao Winnipeg Free Press.

Seguiram-se meses de debate, e finalmente o Parlamento decidiu que a casa tem a obrigação de oferecer tradução simultânea para membros que desejarem falar idiomas indígenas. O recente discurso de Ouellette pôs em prática a nova diretriz. O parlamentar tratou de um tema que, a princípio, parecia não guardar relação direta com os povos nativos: o papel relevante desempenhado por forças canadenses na desocupação da Holanda invadida pela Alemanha nazista, durante a Segunda Guerra. “Pouca gente sabe, mas milhares de representantes das Primeiras Nações se alistaram no exército, na marinha e na aeronáutica. Essa história precisa ser conhecida”, disse Ouellette, que decidiu contá-la na língua original dos soldados em questão.

A ideia, porém, é que os idiomas indígenas sejam usados também em discussões de interesse geral – questões orçamentárias, decisões sobre saúde, segurança e educação.

O parlamento, entretanto, vai enfrentar um problema conhecido nos tribunais do país: a escassez de intérpretes das línguas nativas. Em audiências e julgamentos, a presença do intérprete já é prevista na Carta de Direitos e Liberdades do Canadá – que determina serviço gratuito de interpretação caso o réu não compreenda o idioma falado por juízes, advogados e testemunhas. Mas encontrar esses profissionais de tradução tem sido um desafio: algumas pessoas com fluência nos idiomas não têm a formação técnica exigida para fazer tradução simultânea; outras são amigas ou conhecidas dos réus, o que prejudica a isenção necessária para o exercício da profissão; em determinadas comunidades, trabalhar para o estado – apontado pelos indígenas como responsável pelo massacre de milhares de representantes das Primeiras Nações, ao longo de séculos – é mal visto. A dificuldade já levou alguns julgamentos a serem cancelados. Mesmo assim, representantes dos povos indígenas esperam que agora, com a exigência de tradução também na Câmara dos Comuns, mais gente se interesse pela interpretação de línguas nativas – e contribua para preservar esses idiomas, sua cultura e sua história.