09 Jul / 2020

Craques da tradução simultânea: A interpretação na Copa do Mundo

No dia 14 de junho, a bola vai rolar em Moscou, na partida que abre a Copa do Mundo de 2018: Rússia x Arábia Saudita. Nesse momento, um time de craques tão habilidosos quanto discretos vai entrar em campo – um campo bem mais apertado, formado por 4 paredes à prova de som, sem gramado ou traves. São os intérpretes de conferência, responsáveis pela tradução das coletivas de imprensa e demais encontros oficiais do torneio.

O trabalho de tradução simultânea no mundial tem mais semelhanças com o universo do futebol do que você imagina – e é velho conhecido dos atletas, já acostumados à presença de intérpretes no cenário globalizado do esporte atual. “O grande interesse pelo futebol por parte da mídia, bem como a existência de atletas ‘imigrantes’ em clubes de elite, tem levado a um número crescente de entrevistas coletivas com jogadores e técnicos que não dominam o idioma do país onde trabalham”, escreve Annalisa Sandrelli, professora de Interpretação de Conferências da Universidade de Estudos Internacionais de Roma, num artigo acadêmico sobre o assunto. “Isso cria um nicho de mercado para tradutores profissionais nessa área”. Durante a Copa do Mundo, esse nicho atinge o ápice: é o momento com maior concentração de tradutores falando sobre futebol.

A seguir, você descobre um pouco mais sobre esse “esporte” fascinante chamado interpretação – e sua aplicação durante o mundial.

O Treino: Assim como os integrantes das esquadras nacionais, os intérpretes responsáveis pela tradução simultânea oficial da Copa do Mundo começam a se preparar muito antes do apito inicial. Em primeiro lugar, é preciso escolher os profissionais que vão trabalhar na Copa (leia “A Escalação”, a seguir). Montada a equipe, o Serviço de Idiomas da FIFA – órgão permanente que funciona na sede da organização, em Zurique, na Suíça – distribui para os intérpretes uma série de textos, documentos e glossários: é a fase de estudos. Os tradutores leem o material, aprendem em profundidade a terminologia específica do futebol e da Copa, assistem a vídeos de edições anteriores da competição e vão se familiarizando com as seleções participantes. Também para os intérpretes, há, digamos, “amistosos” que preparam a equipe para o evento propriamente dito: “o sorteio dos grupos, o workshop dos times, realizado em fevereiro de 2018 em Sochi, e sobretudo a Copa das Confederações são uma espécie de ensaio geral do esquema de tradução simultânea que será usado na competição”, conta Estelle Valensuela, gerente da Unidade de Intérpretes da FIFA, em entrevista exclusiva para o blog Outras Palavras, da VOX. “Essas ocasiões são ótimas oportunidades para adquirir mais experiência, trabalhar em parceria com o comitê organizador local da Rússia e saber o que esperar quando a Copa começar para valer”, continua ela.

A Escalação: Alisson. Ederson. Cássio. Danilo. Fagner. Marcelo. Filipe Luís. Miranda. Marquinhos. Thiago Silva. Geromel. Casemiro. Fernandinho. Paulinho. Renato Augusto. Fred. Philippe Coutinho. Willian. Neymar. Douglas Costa. Gabriel Jesus. Roberto Firmino. Taison.

A lista aí em cima, escolhida pelo técnico Tite, você já conhece. Ela foi motivo de muita expectativa antes de ser anunciada – e também de apostas: quem sai do time para a entrada de Neymar, recuperado do dedinho quebrado e autor de um golaço no amisto contra a Croácia: Fernandinho ou Willian? A escalação da equipe de intérpretes para a Copa do Mundo é igualmente importante e delicada, mas leva em conta critérios diferentes. “Selecionamos profissionais experientes, que tenham um diploma de Interpretação de Conferências, sejam interessados por futebol e esportes e tenham também amplos conhecimentos gerais”, explica Estelle. Isso porque, durante uma entrevista pós-jogo, atletas e treinadores podem discorrer sobre impedimentos, lesões na coxa direita, pênaltis duvidosos – ou sobre trechos da Bíblia que costumam ler antes das partidas, acontecimentos políticos em seu país de origem, um filme que viram no cinema e acharam inspirador… Os tradutores têm de estar preparados para tudo: precisam ser, a um só tempo, especialistas e generalistas. “Flexibilidade, mente aberta, compromisso e respeito são fundamentais para um profissional de tradução simultânea”, completa a linguista da FIFA. Tanto na Copa do Mundo quanto fora dela, acrescentamos nós aqui da VOX.

Para montar essa seleção campeã da tradução simultânea, os intérpretes começam a ser contratados meses antes da competição. Embora haja muitos tradutores no mundo, as possibilidades vão se afunilando quando consideradas todas as características acima – mais a necessidade de atender às combinações de idiomas exigidas a cada ocasião, a depender dos países envolvidos (leia abaixo em “O Esquema Tático”). “Os bons intérpretes costumam ser extremamente ocupados e requisitados. Por isso, é preciso reservá-los com antecedência, para garantir que estejam disponíveis durante todo o período da Copa”, continua Estelle.

O Esquema Tático: 4-4-2? 4-1-4-1? 4-2-3-1?

Não, o esquema tático que envolve os intérpretes é um pouco diferente da distribuição dos jogadores num gramado verdinho. É preciso levar em consideração, acima de tudo, os idiomas de trabalho de cada um. A FIFA tem quatro línguas oficiais: inglês, alemão, francês e espanhol. Além disso, a Copa do Mundo reúne seleções cujas línguas vão do nosso português ao árabe, passando pelo dinamarquês, coreano, polonês, japonês e por aí vai.

Num exemplo prático: na fase de grupos, o Brasil vai enfrentar a Sérvia (27 de junho, às 15h de Brasília, para quem não quiser perder). Depois do jogo, como sempre, as duas equipes concedem coletivas à imprensa. Essas conversas costumam ser traduzidas para os quatro idiomas oficiais da FIFA – que, somados ao português e ao sérvio, já representam seis línguas. Mais o russo, falado no país-sede, e temos sete idiomas em jogo. Para temperar bem essa salada linguística, usa-se um recurso chamado de relay ou relê no jargão da tradução simultânea: o jogador sérvio fala na sua língua materna (língua 1); um intérprete traduz do sérvio para o inglês (língua 2); na cabine ao lado, outro intérprete escuta essa versão em inglês (língua 2) e traduz para o português (língua 3). É uma espécie de corrida de revezamento – daí o nome relay –, na qual o conteúdo é passado de um idioma para outro, do jogador para um intérprete e depois para outro, como se fosse um bastão. Pode parecer confuso, mas funciona.

A Comissão Técnica: Os intérpretes também têm seus equivalentes ao treinador Tite, ao preparador físico Ricardo Rosa ou ao auxiliar técnico Matheus Bacchi. Trata-se da equipe de coordenação, da qual Estelle Valensuela faz parte. A principal função desse pequeno grupo de intérpretes não é a tradução propriamente dita, mas sim comandar o time de linguistas: estabelecer as duplas que vão trabalhar a cada evento e em cada combinação de idiomas; distribuir glossários, textos informativos, horários e locais de trabalho; verificar se as condições técnicas são adequadas para o bom desempenho dos intérpretes (tamanho das cabines, equipamento utilizado, qualidade do som, etc.). Na Rússia, isso significa reger uma orquestra de quase 50 linguistas, trabalhando em 16 idiomas.

Assim como ocorreu na África do Sul (2010) e no Brasil (2014), a tradução simultânea das coletivas e eventos na Rússia não será feita in loco, e sim a partir de um Centro de Interpretação Remota (RIC, na sigla em inglês). Em cada uma dessas Copas os centros ficavam, respectivamente, em Johanesburgo, Rio de Janeiro e agora em Moscou. As coletivas são transmitidas via satélite para o RIC, onde os intérpretes trabalham dentro das tradicionais cabines à prova de som, diante de monitores de TV que mostram imagens da pessoa que está falando e precisa ser traduzida. “É fundamental que o profissional veja quem está traduzindo, para acompanhar gestos, expressões e movimentos labiais”, diz Estelle. O áudio da tradução é então transmitido de volta para a cidade onde a coletiva está ocorrendo, de modo que os jornalistas presentes possam acompanhar, e também para canais de TV que estejam transmitindo a entrevista.

O sistema de interpretação remota tem vantagens e desvantagens, conforme explica Andrey Moiseev, diretor do Departamento de Idiomas do Comitê Organizador Local russo: “pode haver um atraso de alguns segundos no áudio da tradução, mas esse problema é compensado pela praticidade de contar com todos os intérpretes no mesmo local”. Ou seja: em vez de ter tradutores viajando por um país de dimensões continentais como a Rússia (o que traria desafios logísticos), a interpretação via satélite permite que uma mesma dupla de intérpretes traduza até três coletivas num único dia. Em mais uma metáfora futebolística, isso significa contar com os jogadores em campo por mais tempo.

Pronto: agora você já pode pegar a vuvuzela, cruzar os dedos e torcer pelo hexa, na certeza de que todo mundo vai se entender, dentro e fora de campo.