30 Ago / 2021

“Posso traduzir primeiro?”

A participação diplomática e precisa da intérprete Zhang Jing durante uma reunião bilateral chamou atenção para o trabalho fundamental dos tradutores – presentes em todos os grandes momentos da História, desde o Antigo Egito até a queda da Cortina de Ferro

“Vamos dar um aumento para a intérprete”. Assim o Secretário de Estado americano, Antony Blinken, elogiou o trabalho de Zhang Jing, responsável pela tradução consecutiva das reuniões oficiais entre China e Estados Unidos – as primeiras sob o governo de Joe Biden.

Durante um momento particularmente tenso do encontro, realizado no Alasca, o diplomata chinês Yang Jiechi deu uma resposta de 16 minutos ininterruptos a um comentário feito por Blinken. Enquanto Jiechi falava sem parar, a intérprete tomava notas furiosamente, e a delegação americana aguardava a tradução. Quando Jiechi finalmente terminou, ele fez um sinal para que o Ministro das Relações Exteriores da China continuasse – esquecendo-se da intérprete. O ministro, por sua vez, acenou para a intérprete, e Jing interrompeu com delicadeza: “posso traduzir primeiro?”. Em inglês, Jiechi sorriu e disse: “é um teste para a intérprete”. E foi aí que Blinken sapecou a brincadeira sobre o reajuste no salário. A cena viralizou na China e Jing saiu dos bastidores – onde os intérpretes costumam ficar – para se tornar uma celebridade no Twitter.

O episódio é o exemplo mais recente da importância dos intérpretes em contextos diplomáticos. “Sem eles, simplesmente não haveria relações internacionais”, resume Jean Delisle, professor da Faculdade de Tradução e Interpretação da Universidade de Ottawa, no Canadá. É dele o prefácio de Interpreters as Diplomats (inédito em português), escrito pela cientista política Ruth A. Roland, um livrinho curto e super interessante sobre a fascinante presença de tradutores em diversos momentos da História – desde os tempos dos faraós, no Antigo Egito, até o fim da Guerra Fria, passando pela chegada das naus de Pedro Álvares Cabral ao Brasil.

O caso de Zhang Jing chama atenção porque, desde o advento da interpretação simultânea (aquela com fones de ouvido para a plateia, e mais recentemente feita por plataformas online), a modalidade consecutiva que foi usada na reunião sino-americana tornou-se bem menos frequente. E, quando ocorre, os trechos traduzidos pelos intérpretes são mais curtos – dois, três, no máximo cinco minutos cada (e não os intermináveis 16, como se viu no Alasca). Em alguns casos opta-se até pela chamada “interpretação intermitente”, ou frase por frase. Mas hoje em dia é extremamente raro alguém falar por tanto tempo sem fazer pausas para a interpretação. E a dificuldade da tarefa – que exige alto grau de memória e concentração, habilidade de anotação rápida e resumida, precisão e sobretudo sangue frio – foi reconhecida no comentário bem-humorado do Secretário de Estado americano.

A interpretação simultânea surgiu após a Segunda Guerra Mundial, durante os Julgamentos de Nurembergue, onde havia quatro idiomas oficiais (inglês, francês, russo e alemão). Traduzir de forma consecutiva todos os depoimentos e arguições, para todos esses idiomas, seria impraticável – e levaria anos. Foi desenvolvida então uma versão rudimentar dos equipamentos que temos atualmente, com microfones para os intérpretes, cabos e fones de ouvido para a plateia. Antes disso, porém, a consecutiva era “a” modalidade em qualquer ocasião oficial. Naqueles tempos, os intérpretes mais experientes e famosos eram capazes de ouvir discursos de até uma hora e depois traduzir tudo, de forma fiel e precisa. Assim funcionava, por exemplo, a Liga das Nações, onde intérpretes lendários como Paul Mantoux costumavam roubar a cena. Esses profissionais tinham tamanha importância para o funcionamento do organismo multilateral, e desfrutavam de tamanho prestígio, que contavam com os mesmos privilégios que os delegados dos países – incluindo imunidade diplomática.

Com efeito, as habilidades diplomáticas (uma mistura bem azeitada de clareza na comunicação, capacidade de negociação e muito tato) são fundamentais para qualquer bom intérprete. Ainda nas palavras do professor Delisle, esses profissionais são “acrobatas linguísticos que vivem se equilibrando numa corda bamba: eles têm o instinto de entrar em estado de alerta sempre que há tensão no ar, discussões acaloradas ou paixões extremadas em jogo”. A intérprete Jing certamente estava com todas as antenas ligadas na reunião da semana passada – não apenas no longo discurso de Yang Jiechi, mas durante todo o encontro.

O caso ocorrido no Alasca revela, ainda, uma dimensão fundamental da língua como arma de afirmação política, econômica, comercial e cultural. Em encontros diplomáticos ou entre chefes de estado, os presentes sempre falam no próprio idioma e contam com intérpretes. Por isso fiquei brava há algum tempo quando a Folha de S. Paulo publicou uma reportagem dizendo que a presença de intérpretes durante uma visita do atual presidente brasileiro ao então líder americano Donald Trump “prejudicava” a conversa. O comentário, feito justamente no caderno que cobre assuntos internacionais, revelava um tremendo desconhecimento sobre a dinâmica dos encontros bi ou multilaterais. Além de facilitar a vida dos participantes (que ficam à vontade para se concentrar no que interessa – a mensagem – sem se preocupar com a estrutura da frase, a pronúncia ou a gramática em um idioma estrangeiro), a interpretação é uma tradição secular em contextos diplomáticos, e carrega consigo um recado: nenhum idioma deve se sobrepor a outro, e todos têm o direito de se expressar na sua língua materna.

Um exemplo histórico: em 1936, ao solicitar ajuda da Liga das Nações contra um ataque italiano, o imperador da Etiópia Haile Selassie fez questão de se dirigir ao plenário em amárico – e foi traduzido para o francês por um intérprete. Selassie falava um francês impecável, mas fazê-lo naquela ocasião, num discurso com aquele conteúdo, seria um sinal de dominação pelos europeus, e o imperador quis marcar posição ao usar o idioma do seu país. Assim é também com deputados indígenas do Canadá e da Austrália, que conquistaram o direito de ir à tribuna discursar em suas línguas, com a presença de intérpretes. Ou no Parlamento Europeu, onde todos (todos mesmo, e olhe que são 27 estados membros) os representantes podem falar na própria língua. E assim foi na recente rodada entre China e Estados Unidos: o diplomata Jiechi estudou no Reino Unido e é fluente em inglês, mas usou seu idioma materno. O embate da semana passada foi mais um capítulo nessa “briga de cachorro grande” em que ambos os lados buscam marcar território – inclusive do ponto de vista linguístico, já que inglês e mandarim são, cabeça a cabeça, os dois idiomas mais falados do mundo.

É evidente que, às vezes, a presença dos intérpretes é usada como ferramenta de manipulação. Em alguns momentos, as partes aproveitam os minutos em que o tradutor fala para pensar no próximo argumento ou resposta. Em outras situações, sugerem que a tradução estava errada como forma de corrigir algum equívoco ou comentário infeliz produzido na língua original (embora os intérpretes possam errar, é claro, como qualquer ser humano).

Não é possível saber se o longo discurso de Yang Jiechi, que colocou a intérprete chinesa sob os holofotes e a levou a viralizar no TikTok, teve uma intenção estratégica. O fato é que o diplomata chutou uma bola quadrada para Zhang Jing – mas ela dominou, matou no peito, fez uma bela tradução consecutiva e marcou um gol para a nossa profissão.

Texto de Beatriz Velloso.