26 Jul / 2021

As Olimpíadas e a interpretação: Do esporte para a cabine, parte 2

Neste segundo texto da série “As Olimpíadas e a Interpretação”, vamos falar de uma modalidade esportiva pouco conhecida, embora seja uma das mais antigas (à semelhança da interpretação, que ocorre desde tempos imemoriais): o tiro com arco.

A prática tem milênios de história, e surgiu para ser usada na caça e na guerra. Passou a ser adotada como esporte na Inglaterra do século XVI, estreou nos Jogos de 1900, em Paris, e foi uma das primeiras categorias a permitir a participação de mulheres.

Vamos usar seu nome popular – “arco e flecha” – para fazer uma analogia com um assunto de grande importância para a interpretação de conferências: a terminologia.

Naturalmente, o intérprete sempre deseja ter, na ponta da língua, a palavra exata para traduzir um determinado termo técnico ou uma expressão idiomática. Assim como um arqueiro, o intérprete segue numa busca constante para acertar a flecha no centro do alvo – na mosca!

Ocorre que a tradução simultânea tem uma natureza ágil e imediata. O intérprete dispõe de poucos segundos para pensar em soluções, e nem sempre esse breve intervalo permite procurar (na própria memória, num glossário previamente preparado, num dicionário ou na internet) o termo perfeito para cada situação. Nesse sentido (e em tantos outros), a interpretação é bem diferente da tradução escrita, que permite ao tradutor pesquisar longamente, experimentar diferentes alternativas na frase e até voltar atrás em suas escolhas.

O intérprete depende, portanto, de conhecimentos prévios, da própria experiência, de uma bela dose de jogo de cintura e da preciosa ajuda do colega de cabine para chegar o mais perto possível da tradução ideal.

Um exemplo: se um palestrante britânico, num congresso sobre esportes olímpicos, usa a palavra archery, o ideal é que o intérprete diga o nome oficial da modalidade em português – “tiro com arco”. Na falta dele, e diante da limitação de tempo, o intérprete poderá recorrer a várias alternativas.

Se em vez de archery o tradutor disser “uma modalidade esportiva olímpica” (usando o que os linguistas chamam de hiperônimo, um vocábulo mais genérico em relação a uma palavra de sentido mais exato), terá transmitido a mensagem de maneira bastante vaga: a “flecha terminológica” irá atingir a faixa mais externa do círculo. Se disser “um esporte em que o atleta tenta acertar uma flecha no alvo” (fazendo uma paráfrase, ou seja, oferecendo uma explicação com outras palavras), terá sido um pouco mais preciso. Caso use o termo “arco e flecha” (um sinônimo, porém em registro mais popular), estará quase lá. Mas se cravar “tiro com arco”, terá a precisão de um arqueiro que atinge o 10 do círculo central.

E o que os intérpretes fazem para ter cada vez mais palavras e expressões corretas gravadas na memória? Estudam, leem e pesquisam sem cessar. O intérprete está sempre garimpando palavras que podem ser úteis na cabine: quando lê jornais e revistas (em mais de um idioma), quando assiste a filmes e documentários, quando conversa com amigos que exercem diferentes profissões… Tudo pode ser uma fonte de termos valiosos para a tradução simultânea.

E, assim como um arqueiro de nível olímpico treina incansavelmente durante horas e dias, o intérprete profissional também dedica muito tempo à preparação para cada evento. Se for traduzir um congresso de ortopedia, irá ler textos especializados sobre o assunto, nas duas línguas da conferência; assistir a vídeos e aulas online; conversar com especialistas e preparar extensos glossários. Se o tema da conferência for engenharia de túneis, exportação de minério ou cinema contemporâneo francês, o processo de preparação será o mesmo.

Todas essas palavras, termos e conhecimentos vão para o “HD” do intérprete, e a experiência acumulada ao longo dos anos aumenta a chance do profissional acertar o centro do alvo. Segundo o pesquisador alemão Klaus-Dirk Schmitz, professor da Universidade de Colônia e especialista em estudos terminológicos, ainda não existem ferramentas tecnológicas de busca adaptadas à velocidade exigida na cabine (com frequência, não há tempo nem para procurar no Google). Daí a importância capital da preparação prévia.

(E aqui vale abrir um parêntese: justamente por isso os intérpretes não cobram por hora, conforme muita gente acredita. O trabalho de tradução simultânea não se resume às horas ou dias de um determinado congresso ou palestra. Começa bem antes, na etapa de estudo, que quase sempre dura mais do que a conferência propriamente dita.)

Resumindo: os intérpretes são arqueiros das palavras. E costumam ter boa mira!