01 Jul / 2021

Nova versão de “Animal Farm” reacende debate sobre o título que ficou consagrado no Brasil

As listas de mais vendidos da semana mostram que um dos best sellers do momento é “A Revolução dos Bichos” – a edição antiga, com tradução de Heitor Aquino Ferreira e um título em português que, embora consagrado entre leitores brasileiros, desvia do inglês “Animal Farm”.

Recentemente, a mesma Companhia das Letras lançou uma nova edição do clássico de George Orwell, com tradução de Paulo Henriques Britto e nome fiel ao original: “A Fazenda dos Animais”. Alguns dirão: “ah, é só um título. Que diferença faz?”. A diferença é grande, enorme. E a história por trás da escolha das palavras que estampam a capa desse clássico é carregada de significado. Não à toa, a chegada às livrarias da versão de Britto reacendeu o debate sobre a carga ideológica embutida em “A Revolução dos Bichos”, sobre a figura de Aquino Ferreira – e sobre como a tradução, esse ofício tão bonito, pode ser usada como arma de manipulação.

Resumindo, de forma breve: escrito por Orwell entre 1943 e 1944, “Animal Farm” foi lançado em 1945 em meio aos escombros da Segunda Guerra Mundial. Visto como uma fábula contra o totalitarismo, o romance narra a história de uma fazenda cujos animais, cansados da exploração e dos maus-tratos, decidem derrubar o fazendeiro – para em seguida serem, eles mesmos, corrompidos pelo poder. No contexto da época, “Animal Farm” foi recebido como a obra de um autor que havia sido marxista e lutado na Espanha contra os fascistas, mas se decepcionara com a brutalidade do stalinismo soviético. Ainda que de fato o pano de fundo fosse esse, o livro acabou sendo usado no pós-guerra como propaganda contra o socialismo em geral (para desgosto do próprio Orwell). E é nesse contexto que surge a tradução brasileira.

Nossa primeira edição de “A Revolução dos Bichos” saiu por aqui nos primórdios da ditadura militar. “O ano era 1964, e nada como um livro contra o comunismo para referendar o golpe em curso”, escreveu a professora e tradutora Dirce Waltrick do Amarante em artigo publicado na Folha de S. Paulo. O projeto de tradução foi idealizado e custeado pelo Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais, ou IPÊS, que trabalhava para divulgar notícias e obras favoráveis ao recém-implantado regime – ou contrárias à “ameaça vermelha”. O homem escolhido para a tarefa foi o tenente Heitor Aquino Ferreira, que assinou a tradução sem declarar a patente militar, apenas como “Heitor Ferreira”. Ele era secretário particular de Golbery do Couto e Silva, por sua vez futuro chefe da Casa Civil de Ernesto Geisel. O episódio é narrado em detalhes na tese de Christian Hygino Carvalho, apresentada ao Departamento de Letras Estrangeiras Modernas da Universidade Federal de Juiz de Fora – e o acervo confidencial de Golbery, cuidadosamente organizado e guardado por Ferreira, foi doado ao jornalista Elio Gaspari e serviu como base para a série “As Ilusões Armadas”, relato definitivo da ditadura no Brasil.

Era esse o pano de fundo da primeira versão nacional de “A Revolução dos Bichos”. No posfácio à nova tradução de Paulo Henriques Britto, o crítico e professor de Literatura Marcelo Pen acrescenta um dado crucial: a palavra “revolution” não aparece uma vez sequer no texto original de Orwell. O que o autor usa, sim, é “rebellion”, ou “rebelião”. Considerando-se o momento histórico do lançamento do nosso “A Revolução dos Bichos” (a recente deposição de João Goulart, a crescente tensão no Vietnã, a Revolução Cubana ainda fresca na memória coletiva), é difícil separar a escolha do título em português – e a opção específica pela palavra “revolução”, tão explosiva naqueles anos 60 – da batalha ideológica travada na época. Um caso exemplar de uso da tradução e da linguagem para fins de manipulação.

Isso não significa que a tradução de Aquino Ferreira seja ruim. Tanto assim que até hoje ela está no catálogo de uma editora respeitada e nas listas de mais vendidos. Cotejar o trabalho do tenente Ferreira com o original em inglês, ou com a nova versão de Britto, é constatar que muitas diferenças e opções tradutórias são questões de estilo, ou de preferências relacionadas a períodos e escolas de tradução. Num bate-papo virtual entre o tradutor e professor Caetano Galindo e Paulo Henriques Britto, organizado no final do ano passado pela Companhia das Letras, este último conta que a decisão por “A Fazenda dos Animais” foi da editora, e não dele – que sugeriu manter o título famoso. Vale a pena assistir à gravação da conversa, na qual Britto também fala de outras aventuras e maluquices tradutórias (tradução é mesmo coisa de doido), como verter “Viagens de Gulliver”, de Jonathan Swift, usando apenas palavras que já existiam no português no século 18.

No final das contas, fica o convite para ler e reler “A Fazenda dos Animais” (ou “A Revolução dos Bichos”, conforme a preferência do freguês), sem dúvida um belo livro e uma alegoria importante até os dias de hoje.

Texto de Beatriz Velloso.